A partir do debate entre as museólogas Adriana Valderrama López e Maria Ignez Mantovani, um ensaio sobre memória, informação, construção do futuro e identidade
Publicado em 14/11/2018
Atualizado às 14:14 de 07/07/2020
por Duanne Ribeiro
Os modos pelos quais as cidades se lembram ou se esquecem têm sido pauta do Brechas Urbanas, ciclo de debates sobre a vida urbana realizado pelo Itaú Cultural. Em setembro, nós nos perguntamos “onde encontrar a memória da cidade?” e encontramos respostas, de um lado, na fotografia e, de outro, na vivência do povo Tikuna. Em outubro, chegamos ao tema por outra via, falando do papel dos museus nos dias de hoje.
Continuando a conversa, nesta coluna destacamos algumas passagens relevantes desse último mês. As falas das participantes – Adriana Valderrama López, diretora do Museo Casa de La Memoria (Colômbia), e Maria Ignez Mantovani, da Expomus, empresa de assessoria museológica – despertam insights sobre memória, informação, construção do futuro e preservação de identidades.
Memórias invisíveis e memórias embargadas
Para Mantovani, a dinâmica dos museus pode ser resumida na questão “o que deve ser lembrado, o que deve ser esquecido?”. “A grande tarefa da museologia”, disse ela, “é o descarte”. Podemos dizer que está inscrito nessa missão um ideal de responsabilidade – pois se trata de decidir o que levar adiante e o que deixar para trás de tudo aquilo que construímos enquanto sociedade. Quais realizações é preciso reencontrar, quais enunciados é necessário ouvir novamente e sempre?
Nesse âmbito, são importantes dois conceitos que transpareceram durante a conversa. Primeiro, o de memórias visibilizadas. Valderrama ressaltou que o Casa de La Memoria é “o único lugar onde a voz das vítimas [da violência urbana, ligada ao narcotráfico, de Medellín] pode ser ouvida”. Essas vivências, que dão a conhecer a história e a cidade de um modo particular, estão ali, conservadas. Sem o museu, toda uma possibilidade de entendimento seria perdida. Parte do vivido seria invisível.
Segundo, Mantovani contou a história de um projeto não realizado, do Museu da Cidade de São Paulo. Apesar de localização definida e custo alocado, por uma mudança de gestão o plano da sua construção não prosseguiu. Toda uma pesquisa havia sido realizada, com pesquisadores e artistas que percorreram várias partes da cidade, conversando com moradores e recolhendo dados. Assim, diz ela, esse acontecimento serve a uma “reflexão sobre memórias embargadas, que não se concretizam”.
O museu contra a desinformação
Esses conceitos trazem à memória equipamentos como o Museu da Pessoa, o Memorial da Resistência, o Museu da Diversidade Sexual. São, todos esses, recursos que não nos deixam cair no “perigo da história única”, como diria a escritora Chimamanda Adichie.
Também remetem a outro mal-estar contemporâneo: a degradação da esfera pública. Um modo de colocar a questão é notar que, nos últimos tempos, no Brasil, tem sido possível a sensação de que não compartilhamos a mesma história. O presente, sufocado por campanhas de desinformação, confunde e desagrega. O passado, esgarçado pela guerra de versões, serve menos para instruir sobre o mundo e mais para dar suporte a grupos em disputa. É como se não estivéssemos de acordo sobre qual é a realidade.
Os museus estão no lado contrário de tudo isso. Instrumentos de ciência que são, eles se apoiam em uma racionalidade que se sabe social, compartilhada. Além disso, prezam a dúvida. Não como arma para desacreditar adversários ou forma de negar puerilmente a confiança em fontes estabelecidas ou indulto para se isolar nas próprias certezas. Essa dúvida age primeiro para desestabilizar o próprio sujeito que a mobiliza, implica rigor.
Dessa maneira, não só podemos nos voltar aos museus para nos entendermos, como na sua prática – nos princípios da filosofia da ciência a que adere – temos ferramentas para nos guiar melhor nesse cenário das chamadas “desordens da informação”.
Quem queima o passado queima o futuro
Talvez um grande símbolo do desapreço em relação à construção sólida do pensamento seja o incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, ocorrido em 3 de setembro deste ano. Esse, claro, foi um tema referido no Brechas de outubro.
Mantovani expressou seu pesar: “O Brasil não pode se dar ao luxo de perder um museu como o Museu Nacional”. Um dos pontos significativos nos quais ela insistiu foi o fato de a destruição de uma instituição como essa trazer não só a perda do passado como a do futuro, pela interrupção do ciclo de pesquisas que aqueles materiais permitiam.
“A queima do museu queima o futuro”, resumiu ela. Se virmos essa frase em conjunto com outra, do geógrafo Milton Santos, citada por Mantovani, a declaração ganha ainda outro peso. Disse Santos: “O presente é uma escolha de futuros possíveis”. Parece-me que isso significa: o que viveremos está em disputa, e depende fundamentalmente dos repertórios a que vamos recorrer para definir nossos passos.
A bola do presídio e a amizade
Só uma última inspiração: Mantovani também contou que durante os trabalhos para o Museu da Cidade de São Paulo perguntaram às pessoas o que elas pensavam que devia ser guardado na instituição. Um sujeito respondeu: a bola com que jogavam futebol no presídio. E não é óbvio? O tanto de história e de relacionamentos que aquele objeto tem em si. Uma senhora respondeu: a amizade, porque sempre que precisou de ajuda para a filha o vizinho lhe dera socorro. Imagine: preservar sentimentos para o porvir...
O que você guardaria em um museu?
Duanne Ribeiro é analista de comunicação do Itaú Cultural. Compõe a curadoria do ciclo de debates Brechas Urbanas.