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Linhas de força do curta brasileiro

Heitor Augusto, crítico de cinema, analisa a seleção de filmes da mostra Curtas Premiados em 2018

Publicado em 01/03/2018

Atualizado às 14:55 de 21/09/2018

Por Heitor Augusto

Uma observação atenciosa dos filmes que compõem a mostra Curtas Premiados nos permite perceber algumas linhas de força que atravessam a criação contemporânea de curtas no Brasil. Apesar do risco de homogeneizar uma produção que anualmente chega à casa do milhar, podemos dizer que as 16 obras em exibição ilustram alguns caminhos gerais.

Veja também:

>> Programação da mostra Curtas Premiados, online de 1 a 8 de março e no Itaú Cultural de 6 a 8 de março

Um deles é a forte presença da autoria negra ou de assuntos raciais. Ainda que a “questão do negro” não constitua uma novidade no cinema brasileiro, a explosão do debate racial nessa área desde 2015 – em especial nos círculos independentes – mostra a multiplicidade de abordagens e desejos, sejam eles estéticos, políticos ou temáticos. Isso nos permite uma análise interessada tanto pelas aproximações quanto pelos distanciamentos.

Espelho que fortalece

O cinema tem a potência de tornar visível os invisíveis e de, ao emoldurá-los, dar-lhes dignidade e existência histórica. Percebe-se em muitos curtas de diretores negros a preferência por uma encenação em que o plano seja construído como uma espécie de fotografia em movimento, permitindo ao espectador olhar de forma frontal para quem está em quadro. A personagem nos mira e devolve a pergunta: “Você está me vendo?”. No recorte da mostra Curtas Premiados, esse recurso está presente em Cabelo Bom e em Travessia.

Codirigido por Claudia Alves e Swahili Vidal, Cabelo Bom (Prêmio Especial do Júri no 45o Festival de Gramado) inaugura sua narrativa com um belo dispositivo: embebedando o presente com imagens do passado, projetando sobre as personagens imagens de um filme com mulheres negras norte-americanas envergando poderosos cortes de cabelo black. Mais do que os depoimentos, a potência de Cabelo Bom está nas fotografias em movimento de mulheres negras, com distintos tons de pele e texturas capilares. Elas olham para a câmera, rompendo a quarta parede, chamando aquele que assiste para fazer parte da experiência, rompendo a mediação; devolvemos a elas o olhar, de um espelho, para o qual elas manipulam seus crespos. Ao se olharem e receberem um olhar horizontal, acolhedor, elas e nós saímos fortalecidos.

Sair fortalecido da experiência é um sentimento que guia também Travessia (Melhor Curta-Metragem no VIII CachoeiraDOC – Festival de Documentários de Cachoeira). O curta de Safira Moreira investiga fotografias de famílias negras no Brasil e se estrutura em três momentos: a fotografia produzida pelo outro (imagens de subserviência); o diagnóstico da ausência de fotografias que atravessem as diversas gerações de famílias negras; e a construção, por meio do próprio filme, dessas imagens. Travessia é, simultaneamente, registro documental e fabulação. Um filme que entrega as imagens que faltam.

Preencher a lacuna com a imagem que falta é ainda a força motora de outros dois curtas da mostra. Torre (Troféu Candango de Melhor Direção de Arte em Curta-Metragem no 50o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro) reconta a história de uma família dilacerada pela repressão no período da ditadura militar (1964-1985). Nessa que é uma das animações mais expressivas dos últimos anos, o relato dos irmãos, tecido a partir de fiapos de memórias, se encaixa com naturalidade nas opções por cores, contornos e representações que se diluem e se fundem umas nas outras. Dirigido por Nadia Mangolini, Torre é também uma lembrança de como a animação não precisa ser vista como gênero cinematográfico, mas como técnica, recurso formal repleto de possibilidades – documentais, inclusive, algo que o cambojano Rithy Panh já havia explorado em A Imagem que Falta (2013).

Procura-se Irenice (Melhor Curta-Metragem pelo Júri Popular na 20a Mostra de Cinema de Tiradentes) também se alimenta do desejo de devolver à história uma personagem forçadamente apagada. Trata-se da atleta Irenice Maria Rodrigues, que denunciou o racismo em plena ditadura, e por ela foi penalizada. A grande força do documentário de Marco Escrivão e Thiago B. Mendonça é “desapagar” uma figura tão importante na história do atletismo brasileiro.

Entre o lúdico e o áspero

Nada (Melhor Som e Prêmio Especial do Júri no X Janela Internacional de Cinema do Recife) e Peripatético (Melhor Roteiro de Curta-Metragem e Prêmio Especial do Júri no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro) são filmes de clara aproximação com o público, ainda que manifestem esse desejo por meio de distintas escolhas de encenação. O primeiro, um curta de Gabriel Martins, apresenta uma personagem niilista que decide romper com a estrutura que empurra jovens para a fornalha do vestibular. Nada ancora-se na trilha sonora e no desenho de som (característica recorrente nos trabalhos do diretor mineiro), além de um deslumbrante trabalho de direção. O roteiro coloca a protagonista Clara em franca oposição aos seus pais – um núcleo biparental negro e de classe média, algo raro no cinema brasileiro –, mas evita maniqueísmos fáceis – estamos do lado, e ao lado, dela, mas nem por isso deixamos de entender seus pais.

Já a segunda obra, um trabalho de Jéssica Queiroz, põe-se em diálogo franco com os anos 1990, seja por meio de signos da cultura pop (como a referência ao desenho animado ThunderCats), seja pela narração em voice over, recurso que marcou os curtas de Jorge Furtado. Peripatético exprime um desejo de ser visto e pelo maior número de pessoas possível, e isso é, sim, um mérito: não ter pudor de buscar audiência. Um filme absolutamente transparente, lúdico, negro e periférico, tão desejoso de estar próximo de quem o vê que, ao final, derruba com afronta a quarta parede.

O equilíbrio entre o lúdico e o áspero é também um elemento-chave na construção de Deus (Melhor Filme pelo Júri Oficial no X Janela Internacional de Cinema do Recife). Possivelmente o melhor curta entre os que circularam pelos festivais no ano passado, o filme do estreante Vinícius Silva transborda conhecimento, domínio e intimidade: sobre a geografia do bairro e do apartamento onde moram mãe e filho; sobre os fluxos de afeto que circulam por uma relação marcada pelo amor e por gigantescas dificuldades. Ainda que em diálogo com as convenções contemporâneas de encenação, o curta consegue algo que comumente associamos ao cinema clássico: a capacidade de nos fazer sentir que a câmera está sempre no lugar certo.

Pele Suja Minha Carne (Prêmio Especial do Júri na 16a Mostra de Audiovisual Universitário América Latina UFMT) é outra obra que carrega o mérito de uma câmera que observa a ação posicionando-se nos lugares corretos. O filme de Bruno Ribeiro valoriza as nuances de um roteiro espelhado, encerrando-se com uma impactante imagem do personagem de frente para o espelho – que, desta vez, não devolve algo que reconforta, mas sim uma identidade em cacos, a ser reconstruída.

Corpos políticos

O desejo de outras masculinidades aproxima dois filmes aparentemente distantes. Dialogando com a história de vida do pugilista Emile Griffith e com o estilo de luta do também boxeador Muhammad Ali, Diamante, o Bailarina (Melhor Filme no 21o Cine PE) nos apresenta um boxeador amador gay. De dia, a rotina de treinos e as ofensas homofóbicas; à noite, apresentações como a drag queen Sahara Diamante. A entrega na atuação de Sidney Santiago Kuanza e o roteiro, assinado por Pedro Jorge, colocam o curta como um gesto de homenagem a uma identidade masculina (homem, negro, boxeador e gay) que não seja tóxica. No meio do caminho, o trabalho deixa uma fagulha de esperança para que pontes sejam construídas, sonhando que opostos convivam no mesmo espaço.

Se Diamante, o Bailarina aponta uma conversa com “o outro”, o documentário Tailor (Melhor Diretor no 45o Festival de Cinema de Gramado) se alimenta do desejo de falar a partir de um “nós” mirando esse mesmo “nós”. Estreante na direção, Calí dos Anjos alterna técnicas de animação com live action, transformando seu curta numa reflexão em primeira pessoa de vivências de indivíduos trans. Em especial, as de homens trans, tão pouco trabalhadas no cinema – outros raros exemplos são o longa brasileiro Música para Quando as Luzes se Apagam (2017) e o curta colombiano Alén (2014).

A própria existência como experiência inevitavelmente política atravessa ainda os curtas Vaca Profana (Melhor Curta – Voto Popular no Festival do Rio) e Vando, Vulgo Vedita (Melhor Curta na 20a Mostra de Cinema de Tiradentes). No primeiro, dirigido por René Guerra, a maternidade é deslocada de uma informação biológica, sendo trabalhada no signo do sentir-se mãe para ser e tornar-se mãe. Já no curta de Andréia Pires e Leonardo Mouramates, a força surge dos jogos lúdicos criados pelo bonde das loiras, que formam uma espécie de sociedade paralela que constrói outra vivência na cidade de Fortaleza.

Interiores do Brasil

No documentário Boca de Fogo (Melhor Documentário da Competição Brasileira de Curta-Metragem pelo Júri Oficial no 22o É Tudo Verdade), cada plano é uma unidade independente. Organizados em sequência, tornam-se fotografias que contam uma história. A qualidade do trabalho de fotografia em preto e branco dá um caráter épico aos eventos banais do filme de Luciano Péres Fernandez. Chama atenção a recusa explícita do curta em mostrar quem é, num jogo de futebol, o protagonista: o próprio jogo. Boca de Fogo não é um filme sobre o futebol no sertão de Pernambuco, mas sim sobre aqueles que dão sentido sonoro, estético e narrativo ao futebol, a saber, o narrador e o comentarista da rádio que narra as partidas do Salgueiro Esporte Clube.

Os interiores também se fazem presentes em Nanã (Melhor Filme para Reflexão no 10o Festival de Cinema de Triunfo) e em Caleidoscópio (Prêmio Mistika de Melhor Produção Cearense no 27o Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema). No curta de Rafael Amorim, a denúncia do roubo de terras no Brasil é construída numa ficção híbrida e que não esconde suas raízes documentais, dando, assim, força política aos eventos mostrados. Já o filme de Natanael Portela trabalha, a partir dos dilemas de uma criança, a relação entre campo e cidade.

Por fim, em Sob o Véu da Vida Oceânica (Melhor Filme Brasileiro pelo Júri Popular no Festival Anima Mundi), observa-se não um interior geopolítico, mas sim de cenário. Utilizando a reconhecível narração de Hélio Vaccari, o curta de Quico Meirelles aposta no humor e na identificação do espectador ao atribuir valores humanos a animais marinhos – em especial, o gastrotricha.

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