Como vocês veem a luta atual contra o racismo e pela afirmação da identidade negra? O que tem mudado, o que ainda precisa mudar?
A luta é contínua e cíclica. A todo momento estamos numa árdua tarefa de resistir, conhecer e lutar. Nossos antepassados fizeram o possível para que a nossa geração pudesse ter acesso ao conhecimento para conseguir avançar e assumir com mais dignidade e força as políticas de combate ao racismo e pela afirmação da identidade negra. De certa forma, conseguimos nos articular e nos reinventar em estratégias para comunicar e disputar os espaços que ainda são de privilégio de uma comunidade que sempre teve a oportunidade, seja pela cor da pele, seja pela classe social. O que tem avançado são as articulações de mulheres negras na luta contra o machismo e o racismo, através de redes que discutem temas específicos, como a maternância e o acesso ao empreendedorismo, entre outros. E, nessa agenda, a luta contra a lesbofobia e a transfobia tem ganhado mais espaço, pois há um esforço de unificação da luta das mulheres negras respeitando as suas diversidades.
Como as atividades do Manifesto Crespo se encaixam nessa luta? O que vocês conseguiram transformar com seu trabalho?
O Manifesto Crespo é uma dessas estratégias de luta pela identidade, pelo direito ao corpo com suas características e sua história. É um trabalho delicado e ao mesmo tempo impactante, pois utilizamos as tranças, os turbantes e, atualmente, os adinkra para religar a compreensão de corpo-identidade, questionando quais são as violências que percorrem o corpo negro, principalmente das mulheres negras, quando nos referimos ao cabelo. Cada roda de conversa ou formação com jovens, crianças e educadores é uma catarse. Memórias sobre os cuidados com o cabelo, histórias de situações de racismo na escola e na família trazem à tona uma dolorida realidade de segregação e exclusão. A partir dessas experiências coletivas, em que utilizamos diversas estratégias artísticas e pedagógicas, conseguimos avançar para a discussão política do papel de cada um no combate ao racismo, e isso tudo passa pelo corpo e pelo que você comunica através dele. A trança, para o Manifesto Crespo, atravessa o campo concreto e se faz simbólica, pois é o ato de se misturar, tecer, construir laços. Desse modo, temos realizado encontros de trocas com comunidades originárias, como as guaranis mbyas, as imigrantes africanas e latinas, comunidades quilombolas, com o intuito de tecer as histórias de resistência e a nossas práticas artísticas.
Como lutar contra o racismo, seja na cultura, seja na política, seja no cotidiano? O que cada um de nós pode fazer?
A luta contra o racismo começa quando se desconstrói a ideia hegemônica de “branquitude” e toda essa avassaladora narrativa eurocêntrica que nós é ensinada nas escolas, onde não nos reconhecemos como sujeitos da história. Os povos originários, chamados de índios pelos europeus, e nós, descendentes de africanos escravizados chamados de negros, temos esse desafio de reconstruir a identidade brasileira que se quer europeia nos seus modos e costumes. Valores como ancestralidade nos ajudam a caminhar com passos mais firmes e com respeito aos que vieram antes de nós e aos que vão vir. Junto a isso, temos que dar valor ao nosso cotidiano, que está pincelado com muitas ações bacanas e atividades de muitos coletivos, saraus e espaços de trocas que rompem o espaço do medo e dos toques de recolher. Na literatura, no teatro e no cinema, cada vez mais estamos protagonizando as produções e é preciso ampliar e atingir mais pessoas para que reflitam sobre como ainda são árduos os nossos acessos e que isso não tem a ver com falta de conhecimento ou de capacidade. A luta continua sabendo-se que é o senso de responsabilidade para se garantir mais dignidade e direito à vida que nos fará caminhar para uma sociedade brasileira menos genocida.
Como veem o legado de Abdias Nascimento? Conhecem seu trabalho, ele os influenciou de alguma maneira, traz algo que lhes interessa?
Abdias Nascimento nos deixou um legado que podemos traduzir na palavra “caminhos”. São tantas as iniciativas que ele proporcionou para a comunidade afro-brasileira, tanto no campo das artes quanto no campo da política, mostrando que temos sim que disputar todos os espaços de poder e voz… Abdias foi um desbravador e, generosamente, nos deixou muitas possibilidades para trilhar, assim como fez Lélia Gonzalez ao apontar com pioneirismo o recorte de gênero no movimento negro e o protagonismo das mulheres negras na luta, que se faz tanto no campo da vida privada quanto no da pública. Ainda como mulheres negras, temos essa tripla jornada de estar servindo as estruturas patriarcais brancas no trabalho assalariado, no campo privado (nos cuidados com a família) e no campo político (com a voz de luta contra o machismo e a violência contra as mulheres). Nessa luz, com as contribuições de Lélia Gonzalez, Beatriz do Nascimento e Carolina Maria de Jesus, entre outras guerreiras memoráveis, os coletivos e o movimento de mulheres negras têm se erguido e avançado no campo político e nas demais áreas. Estamos colocando nossa cara no sol, lindas, pretas e lacradoras, porém, sem esquecer daquelas que nos legaram a luta contra o racismo e o machismo.