Maru Rivera, Jan Leca, Renato Mescoki e Giulia Destro são artistas circenses. Os quatro entraram em contato com o circo por acaso. Maru...
Publicado em 14/07/2017
Atualizado às 12:43 de 03/08/2018
Por Victória Pimentel
Maru Rivera, Jan Leca, Renato Mescoki e Giulia Destro são artistas circenses. Os quatro entraram em contato com o circo por acaso. Maru começou em uma oficina recreativa de aéreos oferecida em sua faculdade, enquanto cursava design. Jan aprendeu a fazer malabarismos sozinho, autodidata. Renato também, e só conheceu de verdade o universo circense durante o ensino médio, quando participou de um curso de circo por curiosidade. Giulia, aos 14 anos, frequentou oficinas de trapézio e tecido no Sesc Belenzinho durante as férias da escola.
Logo após esse primeiro contato, os quatro buscaram mais: Maru no Chile e Jan, Renato e Giulia no Brasil. Buscaram, com certa dificuldade, cursos, escolas, coletivos – modos de se formarem, efetivamente, em circo. Anos depois, especializados em diferentes técnicas, os artistas são os proponentes de dois projetos selecionados no programa Rumos Itaú Cultural 2015-2016: os espetáculos Frágil, de Maru, com direção de pesquisa de Igor Godinho, e Sobrevoltas, de Jan, Renato e Giulia com Rubens de Oliveira e direção de Rodrigo Matheus.
Linguagens
Fruto de uma pesquisa de cinco anos em mastro chinês, Frágil foi apresentado pela primeira vez no Festival Mundial de Circo de 2013, em Belo Horizonte, ainda em versão experimental. Foi lá que Maru conheceu Igor Godinho, artista plástico, marionetista, diretor de pesquisa do espetáculo e, também, marido da artista. Juntos, definiram a temática e as formas de expressão com que gostariam de trabalhar, uma vez que a montagem não possui texto, e finalizaram a cena.
[caption id="attachment_98876" align="aligncenter" width="536"] Maru Rivera em Frágil (foto: Julio Pereira)[/caption]
Frágil parte da ideia de uma infância solitária e seus esconderijos imaginários, além de misturar técnicas circenses com outras linguagens: “Começamos explorando a linguagem do teatro de bonecos, trabalhando na construção de uma bonequinha e sua manipulação. Paralelamente, iniciamos a pesquisa no teatro de sombras e em projeções. Montamos algumas pequenas cenas com a boneca, que logo começaram a se misturar com as sombras. Por fim, levamos a manipulação dela para o mastro chinês também e experimentamos a montagem de telas para projeção que formasse parte do cenário aproveitando a estrutura do mastro”, explica Maru. Com trilha sonora do músico Barulhista, a montagem estreia no dia 28 de julho, às 20h, com apresentações também nos dias 29, às 20h, e 30, às 19h, no Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte.
Circo sobre circo
Sobrevoltas, por outro lado, faz uso da metalinguagem e tem como tema o próprio circo. Após se formar no exterior – Jan e Renato na Bélgica e Giulia no Canadá –, os três colegas sentiram “uma necessidade pessoal de discutir sobre circo, de enriquecer o debate e de expandir os horizontes do circo como arte contemporânea”. O processo criativo durou cerca de dois anos e foi intensificado por meio de um estudo sobre o circo e seu imaginário popular e do questionamento: O que é circo para mim? O que ele representa para mim como indivíduo e como artista circense? “Nós nos distanciamos das necessidades primárias do circo de entreter e olhamos de fora para entender o que nos fazia questionar dentro e fora do picadeiro”, explica Renato.
[caption id="attachment_98878" align="aligncenter" width="497"] Renato, Rubens, Giulia e Jan apresentam Sobrevoltas (foto: Paulo Barbuto)[/caption]
Essa metodologia resultou num espetáculo bastante pessoal. De Sorocaba, Renato conta: “Tentei trazer à tona ocorrências da minha vida na marginalidade em que o circo existe – e resiste –, o ego do artista, a entrega do humano em cena, experiências que tive e tenho em relação ao sentimento de ser imigrante, seja na Europa, seja na grande São Paulo, e o esplendor do circo que encanta o público e me encanta”. Ao mesmo tempo, é uma montagem que vai além das técnicas específicas e apresenta questionamentos e provocações. “Quando nos inscrevemos no Rumos Itaú Cultural, pensamos exatamente nisso: no que nos sentíamos capazes de fazer e o que julgamos necessário fazer com e para o circo no Brasil. Tivemos essa vontade de dialogar com as pessoas que estão fazendo ou buscando uma formação profissionalizante de circo”, explica Giulia. A montagem tem direção artística de Rodrigo Matheus, diretor e pesquisador de circo, e música de Rubens Mathias, que transita entre o erudito e o popular.
Lacunas
Além dos espetáculos, os dois projetos compreendem iniciativas reflexivas e formativas. Do processo criativo de Frágil nasceu o evento Antes Solo – Encontro de Solos Circenses, com espetáculos, workshops e debates que têm como objetivo valorizar, promover e divulgar a diversidade do circo contemporâneo produzido na América Latina. “Passamos por tanta coisa para criar esse espetáculo que não poderíamos desperdiçar esse processo todo. Ele devia ser aproveitado. Assim surgiu a ideia de realizar um encontro no qual podemos compartilhar nossa própria experiência de criação e a de outros artistas”, conta Maru.
Jan, Renato e Giulia, por outro lado, direcionaram sua proposta para a área da formação, buscando a troca e o aprendizado. “Enriquecemos o projeto com apresentações de Sobrevoltas, oficinas de nossas técnicas e discussões sobre formação circense com alunos e profissionais de escolas de circo no Brasil”, explica Jan. Sobre os workshops e as apresentações, os integrantes do grupo contam que as experiências foram muito diversas. “Cada público reagiu de uma forma diferente, desafiadora ou reconfortante, mas permaneceu sempre interessado e atento ao que estávamos mostrando”, pontua Renato. Giulia, por sua vez, comenta sobre a apresentação realizada em uma escola de Tiradentes, em Minas Gerais: “Houve gente que veio me falar que o que havia assistido era bem diferente de tudo o que tinha visto antes no circo. Isso é bem legal de se ouvir, pois mostra que, de certa maneira, o espetáculo contribui para que as pessoas abram seus horizontes em relação ao que é circo”.
Cada uma à sua maneira, as duas propostas refletem os obstáculos que o circo encontra no Brasil. Jan defende a ideia de uma busca por identidade. “O chamado circo tradicional – na verdade, o espetáculo circense praticado no Brasil no século XX – passa por uma crise em função de diversos fatores, mas principalmente por ser uma arte que, hoje em dia, se baseia na nostalgia do século passado e não em uma arte atual que deve ser espelho de seu tempo”, explica. Além disso, é consenso entre os artistas que a falta de incentivos para um circo entendido como arte é um dos principais entraves ao seu fortalecimento. “Nos últimos três anos, vivenciei um circo sem espaço físico para existir, com apoios culturais que não dialogam com a classe artística”, conta Renato. “Os contratantes formatadores da cultura trabalham de acordo com as ‘necessidades do mercado’, pedindo aos artistas que adaptem suas criações, em vez de buscar soluções ao que está sendo ofertado artisticamente.” Já Maru destaca a precariedade do ofício: “Para conseguir aprovar os projetos, os artistas acabam cobrindo uma grande carga horária por cachês muito baixos, aceitando condições ruins de trabalho”.
Ainda que os artistas circenses resistam e se transformem, falta muito, tanto do ponto de vista prático como do reflexivo: cursos de formação de qualidade, professores, materiais, centros de treinamento, editais públicos que incentivem a pesquisa e a criação, articulação entre os artistas, formação de público e até discussão sobre o fazer artístico. Essas lacunas, segundo Giulia, contribuem para que o circo aconteça na marginalidade. “Ele acaba sendo prejudicado por vir de uma cultura que pouco conhece sobre o circo – ele ainda é mais visto como entretenimento do que como arte.”