Em Diálogos com Ruth de Souza, ainda em fase de finalização, Juliana usa entrevistas feitas com a atriz na casa dela, no Rio de Janeiro (RJ), para falar de memória e atualidade
Publicado em 04/09/2017
Atualizado às 11:50 de 04/05/2021
Mais de 60 anos separam o nascimento da atriz Ruth de Souza do nascimento de Juliana Vicente, cineasta selecionada pelo programa Rumos 2015-2016. Essa distância geracional, no entanto, é esquecida quando ambas são aproximadas por muitas outras questões ligadas ao fato de serem mulheres negras, tornando suas histórias um diálogo rico e necessário.
Em Diálogos com Ruth de Souza, ainda em fase de finalização, Juliana usa entrevistas feitas com a atriz na casa dela, no Rio de Janeiro (RJ), para falar de memória e atualidade. Com estreia prevista para 2018, o documentário, no entanto, não espera até lá para despertar sonhos em sua realizadora – entre eles, o de levar Ruth para o Festival de Veneza, já que, quando esta foi indicada ao prêmio de Melhor Atriz por Sinhá Moça (1953), nem sequer ficou sabendo. “Vou me esforçar para honrar esse espaço que já foi dela”, conta a cineasta.
Em entrevista para o site do Itaú Cultural, Juliana fala sobre como teve a ideia de retratar em filme a trajetória de Ruth de Souza e por quais mudanças o projeto já passou.
Como surgiu seu interesse pela vida e pela obra de Ruth de Souza?
Em 2008 conheci a atriz Dani Ornellas, que é muito próxima da Ruth, uma espécie de filha. Foi ela quem primeiro me falou da Ruth, que, entre todas as ausências de referências que a gente tem, era uma que me faltava, pelo menos de maneira consciente. Então, a Dani promoveu esse encontro, que foi muito emocionante, sobretudo porque para mim teve uma dimensão nova de diálogo: conversar com uma atriz consagrada, experiente e que lembrava minha vó Cassimira, com quem eu não tive a oportunidade de conversar quando adulta. Uma mulher forte.
Quando você decidiu por Ruth como tema de seu projeto? Chegou a pensar em outra artista?
Desde 2010, quando escrevi uma primeira versão do projeto da Ruth, eu entendi, junto com a Dani, que a gente precisava contar essa história, e que eu, como cineasta, teria a missão de gerar condição para isso. O tempo de conseguir realizar o projeto teve muito a ver com o tempo de consciência racial do nosso país, lento – só depois de 2015 é que a gente começou a ter as instituições mais afeitas a esse tipo de proposta. Eu já vinha falando da importância e da urgência de realização desse projeto faz tempo, até porque a gente tinha a Ruth em condições melhores de saúde, e eu sabia que havia essa urgência, mas foi no tempo das instituições. Ainda bem que ele chegou. Eu acabei não pensando em outros artistas, embora tenha contato com Léa Garcia e Chica Xavier, que são igualmente importantes e merecem ter suas histórias retratadas. Mas a Ruth é ainda precursora para essas atrizes brilhantes.
Em que etapa do projeto você está e quais serão as próximas?
Neste momento encerramos parte da filmagem, que tinha a ver com uma conversa com ela, com um processo intenso de encontro e pesquisa sobre a vida e a obra da Ruth, assim como do nosso contexto político. Mas finalmente é um filme que fala sobre ela, então fala sobre mim. É como estar diante de um ancestral vivo, que tem tanto para trocar! Como a gente tem caminho para corrigir, coisas para retratar, dores para curar, tudo num filme e num espaço de algumas gerações. Eu e ela temos mais de 60 anos de diferença de uma para a outra. É um processo criativo que mexe com as minhas estruturas pessoais, sobretudo porque me reconheço. Eu esperava que pudesse resolver o filme mais rápido, de forma mais linear, até entender que as nossas rachaduras ainda se encontram e que não dá para ser remendo, tem de ser cura. Estou trabalhando para encontrar esse tom, pedindo a colaboração de outras artistas negras para que o filme seja isso para nós todas.
Da concepção inicial até agora, alguma coisa mudou na ideia original?
Com certeza, até porque a gente lida com variáveis da vida real, sobretudo com uma pessoa que é jovem de espírito, que é criativa, mas que já tem algumas limitações físicas. Então o filme está em movimento e estará até quando ele sair da ilha, até encontrar o público, sobretudo porque nunca estive em um espaço tão intenso de discussão sobre as nossas trajetórias pretas como estou neste momento, o que gera transformação profunda no projeto, uma vez que estou me transformando e a Ruth também.
O fato de você e Ruth serem de gerações tão diferentes ajuda ou atrapalha no diálogo?
Ela reclama das minhas mudanças de cabelo, não sabe por que eu estou uma hora de dread ou pinto meu cabelo de loiro. Não entende por que deixar o cabelo tão pra cima. Mas, tirando isso, ela é uma amiga, é jovem, gosta da troca e tem disposição para criar e ensinar. A Ruth ensina com tanta delicadeza que é uma transmissão bem sutil de sabedoria. Eu entendo que poder retratar Ruth de Souza é algo importante, que por alguma razão maior isso foi designado a mim e às pessoas que estão próximas ao projeto. A gente tem a mesma matriz, ela é muito intelectual, muito ligada ao que está acontecendo no momento, e tenho aprendido muito com ela, sobretudo como acumular experiência sem deixar de ser reflexo do seu tempo. A Ruth é de hoje, ela é uma artista contemporânea.
Já existe lançamento previsto para o filme?
Eu queria mesmo era levar a Ruth para o Festival de Veneza, com senso de justiça. Quando a Ruth foi indicada como Melhor Atriz no festival por Sinhá Moça, ela não soube que estava indicada; quando soube, já tinha passado o festival. Isso é tão absurdo! Uma mulher negra nos anos 1950 indicada como Melhor Atriz, e a gente foi suprimindo essa informação, o silêncio que acompanha a gente todos estes anos. Então, claro que não dá para garantir, mas vou me esforçar para honrar esse espaço que já foi dela. De todas as formas, em 2018 a gente vai ver o filme nas telas de cinema no Brasil.