Em entrevista ao site do Itaú Cultural, Felipe Arruda, diretor do Núcleo de Cultura e Participação do Instituto Tomie Ohtake, discute questões fundamentais para o cenário cultural atual, como fruição, participação e políticas para as artes
Publicado em 19/07/2019
Atualizado às 18:10 de 22/07/2019
Ter a “participação” como provocação interna de uma instituição cultural é um dos pontos centrais na atuação de Felipe Arruda. Responsável pelo Núcleo de Cultura e Participação do Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo (SP), ele e sua equipe desenvolvem diversos projetos tendo como objetivo o protagonismo das pessoas que frequentam o local. Para isso, os programas implementados levam em consideração questões importantes, como acesso, fruição, reflexão e experimentação.
Além de diretor do Tomie Ohtake, Felipe é responsável por programas educativos, projetos socioculturais e de acessibilidade, cursos e premiações realizadas pela instituição. Vem coordenando há 16 anos programas nos campos da arte e da cultura. É pós-graduado em Gestão e Políticas Culturais pelo Itaú Cultural e Universidade de Girona e integrante da U-40 Unesco, rede de líderes culturais voltada para a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais.
O Tomie Otake vem realizando, desde 2002, um intenso programa que promove o acesso, a fruição e o aprendizado da arte pelos mais diferentes públicos. O que você pensa sobre as políticas das artes no setor da cultura nos dias de hoje?
A tônica das políticas culturais nas últimas décadas foi a de ampliar o acesso à cultura. Mais instituições, mais eventos, mais comunicação, mais gente. No Brasil, o nono país mais desigual do mundo, no qual o acesso, a fruição, o hábito e o consumo cultural são baixos, essa dimensão permanece relevante. Mas é insuficiente. Em virtude dos avanços democráticos da nossa sociedade, acompanhados de uma crise de representação política, da revolução da comunicação digital e das novas formas de produzir e de circular cultura, entre outros fatores, a dimensão da participação é cada vez mais primordial. Precisamos ampliar a participação na cultura, mas também investir numa cultura de participação.
Isso significa que as pessoas – todas as pessoas e ao longo de sua vida – devem ter condições de fruir e criar a partir de seus interesses, saberes e motivações, devem ser consideradas no centro dos processos e devem ser capazes de estabelecer colaborações entre elas mesmas e as iniciativas e os modos de organização cultural. Para quê? Para se constituírem como seres autônomos, criativos e políticos – do que toda democracia, para ser plena, não pode prescindir. Esse processo passa, também, por tratar seriamente das pautas identitárias na direção do reconhecimento, responsabilização e reparação por parte das instituições e das políticas, de forma que não apenas o protagonismo das atividades culturais, mas também das decisões, seja distribuído. As políticas para a cultura deveriam refletir essas ambições.
Outra questão é que, mesmo com a evolução das últimas décadas, com o surgimento de novas instituições, programas e leis de incentivo à cultura, ainda estamos submetidos a uma visão reducionista da arte. As políticas são escassas e, em parte, subordinam as artes ao alcance de outras finalidades. As artes devem ser valorizadas em si, como um campo vital de conhecimento e imaginação da sociedade, e, portanto, necessitam de condições e espaços de experimentação, falha, fracasso e também de troca, circulação e educação, na escala e na diversidade do nosso país.
Quais são os projetos do Núcleo de Cultura e Participação do instituto?
Como um todo, o núcleo se propõe a instigar e viabilizar a participação na cultura por parte de todas as pessoas, consideradas como protagonistas das ações. O que implica considerar, sempre, quem está em situação de vulnerabilidade e com restrições de acesso aos seus direitos, principalmente seus direitos culturais. Isso se dá por meio de programas de acesso, fruição, reflexão e experimentação. A palavra “participação” para nós é uma provocação interna, na direção do que devemos almejar, mais do que algo plenamente consolidado.
Estruturalmente, esse núcleo se organiza em quatro áreas: experiências de mediação com os públicos, visitas mediadas, ateliês, pesquisas em arte e educação, programas públicos das exposições; cursos do Espaço do Olhar e da Escola Entrópica, nos campos da arte, da cultura, da ciência e da filosofia; projetos socioculturais e de acessibilidade; e premiações anuais que mapeiam e promovem as produções de destaque nos campos da arte, da arquitetura, do design e da educação, e incluem exposições, catálogos, documentários, laboratórios e residências internacionais.
As experiências de mediação, por exemplo, partem da pergunta “Quais são as formas possíveis de criar relações com as pessoas aqui no instituto?”. E acabam propondo a investigação de trocas com os públicos para além das “visitas”, experiências que são um conjunto de pesquisas e práticas desenvolvidas pelas educadoras e pelos educadores da equipe, que vão desde um podcast sobre arte e educação a uma série de encontros que debatem a presença e a atuação de profissionais negras e negros nas artes.
Já as publicações educativas são desenvolvidas a partir de um laboratório que investiga abordagens, conteúdos, formatos e dispositivos possíveis para esse material, que é então aprofundado por nossa equipe. Foi uma das ações que mais nos mostraram a importância de “fazer com” e não “fazer para”.
Um de nossos prêmios, o Territórios, vem mapeando e promovendo as iniciativas de professores da rede pública de ensino de São Paulo com projetos que fortaleçam os vínculos das escolas com os territórios por meio dos seus diversos saberes culturais, valendo-se da cidade como espaço de aprendizagem. A cada ano produzimos dez documentários sobre os projetos premiados. A instituição como plataforma para o protagonismo da educação pública ligada à cultura.
Além dos nossos próprios projetos, temos aberto os espaços do Instituto Tomie Ohtake para ser ocupados por grupos diversos, de coletivos artísticos a ONGs de combate à violência contra a mulher, de festivais culturais a movimentos pela democracia, de Diretorias Regionais de Ensino a escolas públicas, colocando-nos a serviço de pautas que acreditamos ser importantes socialmente.
Você foi gerente de artes do British Council no Brasil, desenvolvendo programas de cooperação internacional nas áreas de literatura, festivais e economia criativa. Quais foram seus maiores desafios?
Por meio do programa Transform, do qual participei durante três anos, reconectamos as principais áreas das artes do Brasil e do Reino Unido. Foi um programa ambicioso, que criou colaborações entre centenas de artistas, escritores, tradutores, dramaturgos, músicos, produtores, festivais, instituições, museus e outros agentes culturais dos dois países, tendo como eixos centrais a diversidade, a acessibilidade, os talentos emergentes, a formação de novas capacidades e o empreendedorismo no campo criativo.
Nos casos de colaboração internacional, o primeiro desafio é sempre cultural. Brasil e Reino Unido possuem históricos e entendimentos distintos das artes, e também da forma de trabalhar. Mas esta é justamente a essência da colaboração: investir no diálogo, na soma das diferenças, construir confiança. O ganho está no próprio processo.
Como funcionam os cursos e as visitas monitoradas no Tomie Ohtake?
Oferecemos entre 30 e 40 cursos por ano, que podem durar de poucos dias a um semestre, com quase mil alunos participantes, a partir de dois programas distintos: a Escola Entrópica, espaço de aprendizagem no campo da arte contemporânea baseado na erosão de certezas, na experimentação e na troca entre alunos, artistas e curadores, e que propõe a investigação dos processos de criação, sem pretensões de inserção dos alunos no mercado das artes; e o Espaço do Olhar, programa de interesse amplo que cobre dimensões da estética, da ética e da política, com cursos que vão da pintura à filosofia de David Lapoujade, da história da arte latino-americana à literatura infantojuvenil, da colagem à física quântica, sempre com um interesse nas formas de pensar e produzir o que é contemporâneo.
Nos dois programas, oferecemos bolsas a pessoas negras, indígenas, trans, com deficiência e outras em situação de vulnerabilidade. A cada semestre, os alunos apresentam seus exercícios e suas produções em mostras que realizamos nos ateliês do instituto.
Já as visitas, que chamamos de “visitas mediadas”, são realizadas por uma equipe fixa de oito educadoras e educadores de diferentes formações nas áreas de humanas. As visitas têm duração de duas horas, sendo metade dedicada a ver a exposição e metade à experimentação artística nos ateliês do instituto. As mediações sempre partem do princípio de “ver junto”, sem hierarquizar conhecimentos. Mas também fazemos visitas em outros formatos e durações, com o uso de dispositivos criados pelas educadoras e pelos educadores, como deitar no chão, ficar em silêncio, sair pelo bairro, escrever, relacionar obras com poemas, ouvir música etc.
O exercício de tais dinâmicas e dispositivos foi moldando as experiências de mediação, comentadas acima, e hoje vemos como o olhar para o educador como pesquisador e autor, com autonomia, gera proposições interessantes no campo da participação, pois considera primordialmente os interesses genuínos das duas partes: educadores e públicos.