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A valorização da memória na gestão institucional

Especialista em arquivos, Marcia Pazin fala sobre a memória como ferramenta de gestão, sobre sua importância como pilar de...

Publicado em 07/08/2015

Atualizado às 21:10 de 02/08/2018

Doutora e mestre em história social pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em organização de arquivos pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da mesma instituição, Marcia Pazin será a convidada da edição de agosto das Jornadas Culturais, evento produzido pelo Centro de Memória, Documentação e Referência do Itaú Cultural em parceria com a Fundação Bunge. Marcia nos concedeu uma entrevista e abordou temas como a memória como ferramenta de gestão, sua importância como pilar de desenvolvimento institucional e gestão cultural.

Marcia Pazin é docente do Departamento de Ciência da Informação, no curso de arquivologia, da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Foi responsável técnica da Códice ‒ Memória & Arquivo Ltda., empresa de assessoria para implantação de projetos de gestão documental e memória institucional. Atuou como gerente de documentação e projetos da Fundação Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento. Foi professora do curso de pós-graduação em gestão arquivística da Fundação Escola de Sociologia e Política (Fesp) e do curso introdução ao tratamento e à política dos arquivos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [PUC/SP (Cedic/Cogeae)]. Também atuou como docente em cursos de extensão na Associação de Arquivistas de São Paulo (ARQ-SP) e no curso de especialização em organização de arquivos do IEB/USP. É autora de diversos artigos e do livro Arquivos de Organizações Privadas – Funções Administrativas e Tipos Documentais.

As Jornadas Culturais trazem uma série de palestras e oficinas gratuitas, com foco em estudantes, profissionais e outros interessados na preservação da memória organizacional. São dez jornadas: oito em São Paulo, uma em Belo Horizonte (MG) e uma em Curitiba (PR). O evento é promovido pelo Centro de Memória, Documentação e Referência (CMDR) do Itaú Cultural em parceria com a Fundação Bunge. Mais informações no site: http://jornadas.fundacaobunge.org.br:8080/jornadas.asp

OBS: Parece-nos que a memória institucional tem ganhado cada vez mais espaço nas pautas de gestão das instituições aqui no Brasil, tanto no setor público como no privado. Pode comentar brevemente esse panorama?

Pazin: A partir dos anos 1970, o Brasil passou por um processo significativo de valorização da memória. Nesse momento havia um movimento de registro da memória em âmbito nacional, com a criação de centros de documentação histórica em diversos setores da sociedade, principalmente nas universidades, para a preservação de acervos de importância em pesquisas. No ambiente público, a reformulação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, dava nova dimensão à questão da preservação do patrimônio.

A partir do fim dos anos 1980 e do começo da década de 1990, esse movimento se expandiu e as organizações começaram a perceber que a memória delas próprias era um valor importante. Teve início aí um movimento de criação de unidades em que se preservasse o acervo histórico institucional. Alguns centros de memória importantes nasceram nessa época, mas ainda eram utilizados muito mais como um espaço de celebração e repositório de uma parte da documentação de valor histórico do que como um componente da gestão organizacional.

Foi nos anos 2000 que houve uma mudança de enfoque e os gestores começaram a perceber que os centros de memória e o acervo documental poderiam ser fonte para outros usos nas organizações, além daquele simplesmente memorialístico, no sentido tradicional do termo, de monumentalização do passado. Havia a questão da memória social, mas também poderia haver uso gerencial do acervo disponível. Os projetos de memória ou os programas estabelecidos, como os centros de memória que apareceram a partir daí, já apresentaram esse caráter mais abrangente de organização e uso de memória no contexto organizacional.

A memória é um dos alicerces para o desenvolvimento institucional e vem se tornando uma importante ferramenta de gestão. Conte um pouco sobre como ela pode auxiliar na melhor gestão de instituições.

A representação dos fatos passados e de sua relação com o funcionamento da organização é um dos importantes mecanismos de gestão ainda pouco estudados no Brasil. Podemos considerar três grandes abordagens da memória nas organizações. Temos a abordagem da cultura organizacional, em que a memória da organização é uma ferramenta que pode ser utilizada para revitalização e reforço da cultura do grupo. E também como apoio à formação de lideranças, ao reforço dos valores institucionais e à ampliação da sensação de pertencimento dos membros da organização.

Outra abordagem é a da imagem institucional, a mais usada pelas organizações que têm centros de memória implantados. Trata-se de utilizar a memória como estratégia de comunicação e marketing, como um fator de representação da organização diante de seu público. Valorizar aspectos como solidez, tradição ou vanguardismo, entre outros que estejam presentes na trajetória organizacional, pode colaborar para o fortalecimento da imagem institucional.

Uma terceira abordagem é a da criação de conhecimento, conhecida antes como memória técnica e mais recentemente como memória organizacional. Trata-se da organização sistemática do conhecimento produzido dentro de uma organização, com a criação de um repositório disponível para utilização futura. Mas, para que possa ser considerado efetivamente memória, esse repositório, baseado em informações e dados produzidos pela organização, deve ser trabalhado do ponto de vista da gestão do conhecimento – deve ser socializado e externalizado pelo grupo, com a criação de ferramentas de tecnologia da informação que permitam sua disponibilização associadas a estratégias de divulgação de conteúdos.

Essas três abordagens frequentemente convergem para finalidades comuns, como é o caso das campanhas publicitárias de produtos baseadas no estudo da evolução de marcas. A realização de um estudo técnico de marketing para a análise e a interpretação da imagem de uma marca pelo público em determinado momento pode levar à melhor utilização futura dessa marca, tanto com o objetivo de sua revitalização como para o fortalecimento da imagem institucional da organização numa campanha de comunicação.

Comente brevemente a relação entre memória e patrimônio e se conhece alguma ação do Estado de política cultural que, de seu ponto de vista, tenha sido interessante.

O patrimônio, seja ele material (edificado ou documental) ou imaterial (expressões culturais e tradições de um grupo), pode ser considerado uma das faces concretas da memória de um povo. A definição comum de patrimônio, como o conjunto de bens naturais ou culturais de importância reconhecida para determinado grupo, sociedade ou para a humanidade e que devem receber proteção para que sejam preservados, demonstra que o patrimônio é uma das representações da memória da sociedade em que está inserido.

Há várias ações possíveis de preservação da memória. O tombamento de bens é a política cultural de preservação do patrimônio mais antiga no Brasil. Atualmente, os governos de modo geral, em âmbito nacional e local, atuam como fomentadores da preservação da memória social em diversos setores da sociedade. Os editais de fomento à cultura normalmente têm linhas voltadas para a preservação da memória local, do patrimônio e de tradições locais.

Seria difícil citar um caso específico, pois há muitos. Mas, quando pequenas cidades ou grupos no interior do país começam a perceber que a memória local é importante e que existem mecanismos governamentais que possibilitam a preservação de temas que vão além dos fatos políticos tradicionais – como as tradições culturais locais ou a preservação do patrimônio documental, com a criação de arquivos históricos ou museus –, observa-se que a preservação da memória vem se tornando gradativamente uma política cultural de fortalecimento das identidades locais.

É claro que há muito ainda por fazer. A gestão pública ainda precisa melhorar, e muito, os mecanismos de acesso e de capacitação dos agentes locais, mas temos evoluído muito mais rapidamente nas últimas duas décadas para essa finalidade.

Como o uso de centros de memória e acervos pode auxiliar na atuação do gestor cultural?

Podemos pensar essa questão sob dois pontos de vista. O primeiro é o viés institucional. Assim como qualquer outra organização, as entidades culturais produzem memória. E, por incrível que pareça, poucas vezes temos visto os agentes culturais efetivamente preocupados com a construção de uma reflexão retrospectiva sobre sua atuação. Os grandes museus brasileiros estão mais adiantados nessa atividade. A própria característica institucional desse tipo de entidade, que de modo geral tem um viés preservacionista, faz com que eles reflitam regularmente sobre sua atividade com o registro e a realização de instâncias de discussão, como seminários, encontros e simpósios sobre o tema.

Mas o gestor cultural de artes e espetáculos, por exemplo, tem atuado muito como produtor cultural e dado pouca atenção à preservação da memória da produção. Os casos começam a aparecer, mas em grandes entidades, marcadas também pela valorização da preservação cultural, como é o caso do Itaú Cultural – que recentemente transformou seu Centro de Documentação e Referência em Centro de Memória, Documentação e Referência, numa clara distinção entre a preservação do acervo documental e sua utilização para referência e reflexão sobre as próprias práticas.

Em segundo lugar, podemos pensar do ponto de vista do gestor individualmente. Poucos deles estão preparados para utilizar os acervos disponíveis ou para fomentar a criação de novos acervos documentais. Talvez forçados pela premência de trabalhar por patrocínios e verbas – um problema constante na área cultural no Brasil – ou talvez por causa da ausência de formação gerencial específica desses profissionais, o fato é que aquele momento importante de reflexão sobre sua atuação passada, com o objetivo de análise e planejamento, acaba não acontecendo na maioria dos casos ou, quando acontece, não é de maneira sistemática, e sim em iniciativas individuais. Este é o papel de um centro de memória: ser repositório, mas também motor de reflexão sobre a atuação cultural do gestor.

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