Em um muro de Bolonha, na Itália, uma pichação ilustra a importância do crítico literário brasileiro na formação intelectual de estudantes espalhados por todo o mundo
Publicado em 24/07/2018
Atualizado às 11:47 de 03/08/2018
Por Roberto Vecchi
Não sei se Antonio Candido chegou a visitar Bolonha durante as suas viagens pela Itália ou se o seu contato com a cidade se deu apenas por meio dos livros. Lembro-me muito bem de que esse tópico surgiu em um dos poucos encontros que tive com o mestre. Foi no saguão do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), em julho de 1994, por ocasião do IV Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic). Com elegância, perguntou-me de qual universidade eu era. “Bolonha”, eu disse, e ele logo retrucou: “La Dotta!”, mostrando que o seu conhecimento das realidades cultural e histórica da universidade mais antiga da Europa não era em nada superficial. Pelo contrário.
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Quase 25 anos depois, em abril de 2018, apareceu uma pichação num muro de Via de' Chiari, a rua ao lado do departamento que eu dirigia, o de línguas, literaturas e culturas modernas, no bairro jesuítico de Bolonha que abrigou os religiosos expulsos da Península Ibérica no século XVIII. Era uma pichação lilás, com letras firmes, provavelmente feitas por uma mão feminina, e que proclamava: “Antonio Candido vive!”. Pensar nessa mensagem espontânea, no seu eco simbólico de memória revolucionária, num contexto muito vivo mas também de relações codificadas, como o da universidade, significa refletir sobre o impacto que a produção de Candido teve e continua tendo numa universidade pública da Europa do sul.
Por que “Antonio Candido vive!”? A frase, que parece emular um grito de batalha, de fato se inscreve num contexto no qual os escritos de Candido são, em particular na fase formativa da graduação, passagens iniciáticas fundamentais. Indiciariamente, tentei identificar o autor – ou a autora – da intervenção. O curso que era então ministrado dedicava-se ao século XIX e tinha como ponto focal a obra de Machado de Assis – e, para introduzi-la a alunos internacionais desprovidos de uma formação prévia em literatura brasileira, mostra-se extremamente útil o ensaio “Esquema de Machado de Assis”, que Candido escreveu para uma conferência realizada em 1968 nos Estados Unidos. Mesmo que se refira a obras – em particular contos – que os alunos conhecem por alto, indiretamente e pela mediação do docente, a reflexão de Candido se estrutura com uma surpreendente capacidade de inclusão. Qualquer um vira leitor de Machado por esse caminho.
Em vez de excluir, sua escrita incorpora níveis muito diferentes de conhecimento e de informação. Como um leitor se coloca em relação a uma obra oriunda de outra língua e de outro contexto sociocultural foi uma preocupação constante de Candido.
Aqui surge, a meu ver, um traço particularmente apreciável para alunos e leitores estrangeiros da obra do autor do clássico Formação da Literatura Brasileira. Em vez de excluir, sua escrita incorpora níveis muito diferentes de conhecimento e de informação. Como um leitor se coloca em relação a uma obra oriunda de outra língua e de outro contexto sociocultural foi uma preocupação constante de Candido. Num diálogo fértil com outros críticos a respeito de Graciliano Ramos, Candido e os demais se interrogam sobre o que orienta um leitor que se aproxima de uma literatura estrangeira. No caso, esse leitor procura um acesso ao Brasil por meio das produções literárias – que representam, assim, um veículo de mediação. E nisso o ensaio de Candido ganha ainda mais valor, já que acrescenta aspectos do contexto que são preciosos para uma didática dirigida a alunos que, junto com a literatura, aprendem também a entender as dobras mais retortas de um mundo tão complexo como o Brasil.
No mesmo curso, a abordagem ao romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, se dá por meio de outro ensaio crucial de Candido, “Dialética da Malandragem”. Talvez esse trabalho explique melhor a dívida inextinguível que as bibliografias dos cursos de estudos brasileiros no exterior – não só de literatura – têm com o autor. Outra obra exemplar nesse sentido é “Iniciação à Literatura Brasileira”, um precioso texto concebido para um volume italiano dedicado ao quinto centenário do descobrimento da América e pensado para leitores estrangeiros – especificamente para uma das categorias mais complexas para um docente: os principiantes. Percebem-se na obra a polidez, o carinho, a generosidade que faz com que um imenso intelectual procure a linguagem mais apropriada para compartilhar seus conhecimentos com alfabetizandos da disciplina. O grande crítico é sempre um grande divulgador, um grande pedagogo.
Há também outro elemento relevante que se acrescenta ao primeiro e que explica o sucesso do discurso crítico de Candido fora do Brasil. Trata-se de traços estilísticos que se fundam sobre um frescor expositivo, uma linearidade lógica e argumentativa, e que logo absorvem os leitores, inclusive os menos informados. Isso decorre também de uma característica de alguns dos ensaios de Candido: parte deles é fruto de palestras que, revistas e reorganizadas, se configuram como texto.
Isso mostra, a meu ver, um duplo aspecto. Por um lado, atesta a seriedade crítica dispensada perante um público não especializado sem abdicar de um elevado grau de rigor reflexivo, tanto que uma conferência preparada para uma exposição oral se transforma depois num texto crítico penetrante. Por outro lado, exibe uma tendência inclusiva do discurso crítico que pauta uma reflexão cristalina, mostrando como a vasta erudição se casa com uma tensão humilde não para esconder o raciocínio, mas, pelo contrário, para expô-lo de modo que possa contar com uma plateia bastante ampla de destinatários. Um dos textos mais emblemáticos da personalidade de Candido, da sua integridade humana e crítica, “O Direito à Literatura” surge nessas condições, a partir de uma ocasião pública promovida pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e dedicada aos direitos humanos.
Percebi muito bem o potencial de penetração da obra do grande crítico em 12 de maio de 2017, dia em que ele faleceu. No final daquela tarde, em Bolonha, a filósofa Deborah Danovski e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro apresentariam um trabalho conjunto em uma livraria da cidade. Era um dia chuvoso e fiquei a tarde toda na direção do departamento. O curso que estava sendo ministrado no semestre era o de literatura colonial brasileira – e os alunos da graduação tinham como base outro ensaio canônico de Candido, “Os Ultramarinos”. A notícia de sua morte alastrara-se pela internet e os estudantes já estavam informados. Quando saí do departamento, muitos deles se aproximaram para perguntar como eu estava. Fiquei surpreendido e pensei que se referissem à iminente apresentação pública do livro de Danovski e Viveiros de Castro. Quando perceberam minha desorientação, deram-me a notícia. Na página dos alunos no Facebook uma pessoa escreveu: “Antonio Candido faleceu. Como estará Vecchi?”.
Tal atitude surge numa comunidade de aprendizagem, como um curso universitário, quando há uma proximidade afetiva em relação ao magistério, à crítica, às posições mais refletidas e militantes, uma simpatia que se enraíza profundamente entre os alunos. Mesmo a uma distância abissal do Brasil, da literatura brasileira, da crítica literária brasileira, substanciam-se um respeito e um reconhecimento íntimos. E o muito que Candido nos deixou, a que sempre poderemos ter acesso, sobrevive.
Por isso, uma pichação como aquela que apareceu recentemente nos muros de Bolonha – “Antonio Candido vive!” – pode surpreender, mas só inicialmente. Na verdade, trata-se de um gesto anônimo e coletivo de uma turma infinita e mundial de alunos que Candido conseguiu reunir – mesmo sem conhecê-los pessoalmente – e que muito lhe devem em termos de conhecimento de um país, com sua literatura e suas lutas; estudantes que muito ganharam e seguem ganhando em decorrência da paixão que o intelectual nutria pela crítica e pelo pensamento, de sua coerência e de seu compromisso humano e humanista, que se torna naturalmente político.
Uma turma que tem e terá uma gratidão inexaurível por aquele discreto e elegante professor e crítico. Uma turma que somos todos nós.
Roberto Vecchi é professor de literatura portuguesa e brasileira da Universidade de Bolonha, na Itália.
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Este ensaio foi produzido para o Colóquio Internacional Antonio Candido, evento ligado à mostra que o programa Ocupação Itaú Cultural desenvolveu para homenagear o professor e crítico literário – que completaria 100 anos em 2018.
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