Alexandre e Nayra compartilham a história da Aparelha Luzia, centro cultural e quilombo urbano de São Paulo, fundado em abril de 2016
Publicado em 08/01/2018
Atualizado às 18:57 de 09/02/2023
Corpos negros girando e girando. Longos vestidos coloridos se movendo no ritmo de um toque tão forte quanto a sensação de se reconectar com quem se é. Alguns lugares são morada de lembranças, e para nós a Aparelha Luzia é a de que a história de pretas e pretos é anterior à escravidão.
Pensar outros recortes sobre o ser negro na história e no tempo-espaço em que vivemos tem sido um exercício de fazer autorretratos cuidadosos. Algumas vezes, são composições e bordados narrativos que lembram as obras de Rosana Paulino. Outras, vozes cantantes em rodas de samba, como à que fomos na Aparelha Luzia, a última de 2017, para fechar o ciclo de 12 meses.
Entre dias densos, olhar para outras e outros fora de nós que nos atravessam com o que produzem e são é se sentir parte de um grande panorama vivo que se alimenta de luta, mas agora (ainda bem) cada vez mais de inspirações reconhecidas entre nós também. É interessante observar o que cada artista está escolhendo como foco central para falar sobre si e, consequentemente, sobre nós.
Sabemos, sim, que precisamos estar em constante alerta para a sobrevivência. Mas não existe um único jeito de lutar e, em uma sociedade que tenta nos anestesiar de sensações para além do medo e da necessidade de consumo, permitir-se só dançar de pés descalços junto a outras pessoas pretas também é um ato político.
Durante o pesado ano de 2017, nós nos propusemos a desfrutar de outros aspectos da nossa humanidade. Aprender algo novo só por gostar muito ou para descobrir se gostamos, fazer uma viagem, viver e se permitir dar e receber afeto. Eu, Nayra, ganhei coragem de sair só comigo e andei pela cidade em muitas noites. Na cidade que me provoca cortes e alentos pequenos, fui em busca de pontos de luz para iluminar o peito e seguir acreditando. Percebi que todos eles eram espaços de escuta-fala e, logo, de vulnerabilidades expostas, dança e movimento. E saí digerindo ideias, pensando sobre novas construções e desconstruções do ser negra/negro, militante, artista, pensadora/pensador, corpo que se movimenta pelo mundo, gente.
Ao mesmo tempo, seguimos acreditando que cada pessoa que está usando seu corpo e mente políticos para ocupar espaços e nos fazer repensar imagens, histórias e símbolos está dando continuidade a passos que “vêm de longe”. Mas não estão restritos só a um passado ou ao futuro.
Aqui, no presente, também estamos participando e sendo agentes de reconstruções cotidianas de memórias. Se os batuques, as cores vivas e os corpos socialmente ditos masculinos são carregados de estereótipos racistas que inundam imaginários há séculos, neste momento, enquanto nos permitimos olhar, viver e balançar nossos corpos negros em um espaço como a Aparelha Luzia, um quilombo urbano, registramos em nós memórias novas, de autocuidado e ligação ancestral, que com certeza estão nos marcando de um jeito mais positivo, saudável e livre. Um jeito novo de fotografar quem somos, no tempo que nos cabe.
Quão importante isso é para jovens negros que estão se descobrindo?