A atriz Gabriela Carneiro da Cunha fala sobre o processo de criação da peça Guerrilheiras ou para a Terra Não Há Desaparecidos, projeto...
Publicado em 05/01/2016
Atualizado às 11:43 de 01/08/2019
O espetáculo Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos traz a história de 12 mulheres que lutaram e morreram na Guerrilha do Araguaia, um dos mais importantes e violentos conflitos armados da ditadura militar brasileira. A idealizadora do projeto, Gabriela Carneiro da Cunha, compartilha conosco o processo de construção dessa narrativa, algumas percepções sobre a realidade das comunidades que foram visitadas e os desafios para as políticas públicas voltadas para a cultura nessas comunidades. Leia abaixo.
Incentivado pelo Rumos 2013-2014, Guerrilheiras... contou com direção de Georgette Fadel e dramaturgia de Grace Passô. A peça esteve em cartaz no Espaço Sesc, no Rio de Janeiro, e foi apresentada em outubro na Mostra Rumos, no Itaú Cultural, em São Paulo.
(Foto: Elisa Mendes)
Gabriela Carneiro da Cunha é formada em artes cênicas pela Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), no Rio de Janeiro, e é integrante e fundadora da Pangeia Cia. de Teatro. Colaborou no argumento do curta de ficção Igor, dirigido por Eryk Rocha e que compõe o longa de episódios Graduate XXI. Atuou nos longas O Velho Marinheiro, com direção de Marcos Jorge, Encantados, com direção de Tizuka Yamasaki, e Jards, de Eryk Rocha, além dos curtas Ao Meio, dirigido por Vitor Leite, e Laura Denver, com direção de Antonia Catan e João Marcelo. Como roteirista, escreveu os curtas Se Não Fosse a Brisa e O Menino que Via Devagar. Na TV, atuou em Passione, Morde & Assopra e Em Família, da Rede Globo, e em 2013 protagonizou a série Beleza S/A, da GNT. No teatro, atuou em Depois da Queda, O Campo, Tentativas contra a Vida Dela e Rock n’Roll, as quatro obras com direção de Felipe Vidal; em A Casa, Câmera, Passagens e Maratona, com a Pangeia; Às Vezes É Preciso um Punhal para Atravessar o Caminho, com direção de Ivan Sugahara; Todo o Tempo do Mundo e Sacrifício de Andrei, espetáculos dirigidos por Celina Sodré; Lili – uma História de Circo, com direção de Isaac Bernart; e Simbora – o Musical, sobre a vida e a obra do cantor Wilson Simonal.
Comente quais foram os principais desafios para realizar esse projeto, dadas a escassez de material para as pesquisas e a não “identificação” das vítimas.
Acredito que o maior desafio tenha sido transformar essa história em teatro. Fizemos uma longa pesquisa bibliográfica e documental sobre a guerrilha, o que foi muito importante como ponto de partida, mas não queríamos criar uma peça histórica ou jornalística, e sim encontrar a poesia dessas mulheres e transformá-la em teatro. Por isso, desde o início sabíamos da importância de ir até a região do conflito. Não queríamos fazer uma pesquisa somente com base em livros e informações. Queríamos conhecer o lugar, as pessoas que tiveram sua vida diretamente afetada pela guerrilha, ouvir suas memórias e saber o que, para elas, permanecia disso tudo.
Nesse processo tivemos a ajuda fundamental do historiador e membro da Comissão da Verdade do Pará Paulo Fonteles. Também conversamos com os familiares das guerrilheiras, que nos deram uma dimensão íntima e afetiva de cada uma delas, e com mulheres que participaram da luta armada durante a ditadura no Brasil. Tudo isso foi importante para que pudéssemos juntar algumas peças de um quebra-cabeça que está longe de ser montado inteiramente.
Uma das maiores dificuldades em relação ao Araguaia é a quantidade de diferentes versões sobre o que realmente aconteceu há 40 anos lá no meio da Amazônia. Até hoje não há uma versão oficial clara. Durante muito tempo as Forças Armadas resistiram inclusive para assumir a existência da guerrilha e ainda hoje os documentos não foram abertos integralmente. São muitos espaços vazios nessa história – o principal deles são os corpos que ainda permanecem desaparecidos.
(Foto: Elisa Mendes)
Qual é o contexto da produção artística nas regiões visitadas por vocês nessa “incursão para conhecer a realidade das guerrilheiras”? Lembrando que a Guerrilha do Araguaia em meados de 1966 envolvia partes de três territórios: Pará, Maranhão e Goiás (hoje o Tocantins).
Na nossa pesquisa nos aprofundamos no estado do Pará, onde encontramos um panorama artístico muito rico, mas que ainda carece de incentivo e de políticas públicas mais integradas com a realidade local. Tivemos algumas reuniões com lideranças artísticas locais, grupos de teatro amador, cineastas e cineclubistas. Assistimos a alguns filmes sobre a guerrilha realizados por pessoas da região, como Araguaia Campo Sagrado, dirigido por Evandro Medeiros. Fomos recebidos em Marabá por Deise e Antonio Botelho, gestores do Galpão das Artes de Marabá [GAM], um lugar impressionante, um espaço de criação e discussão artística, especialmente voltado para as artes plásticas, mas que reúne todos os artistas da região.
Infelizmente esse lugar acaba de fechar. O GAM era mantido havia anos pela força desses irmãos, sem nenhum incentivo público. Sei que eles lutaram muito na iniciativa privada e pública para manter o local aberto, mas nem o governo estadual nem o municipal nem as grandes empresas da região se interessaram em manter um espaço tão importante para aquela comunidade.
(Foto: Elisa Mendes)
Você participou da idealização do espetáculo Guerrilheiras... e também atua como uma das atrizes. Qual foi a sua percepção dos desafios para as políticas públicas culturais nessas cidades?
Acredito que o grande desafio em quase todas as cidades do Brasil seja a criação de políticas públicas que realmente incentivem as iniciativas e as expressões artísticas de suas comunidades e não copiem um modelo mercadológico e comercial. Estive em cidades muito carentes, onde a cultura não é uma prioridade ou ainda é entendida como algo folclórico (no pior sentido da palavra) – ou então só como entretenimento.
É claro que houve avanços, principalmente por meio de algumas ações do Ministério da Cultura que democratizaram o acesso e o financiamento público à cultura nas diferentes regiões do país, mas são iniciativas tímidas perto da forte expressão cultural presente nessas cidades e que vêm sofrendo um retrocesso nos últimos anos.
(Foto: Elisa Mendes)
Você percebeu alguma ação ou política cultural para a inclusão e a inserção das mulheres nessas localidades?
Não, pelo contrário. Ouvi relatos de mulheres que tentaram realizar seus projetos sociais e de economia familiar por meio de ferramentas do governo e não conseguiram obter financiamento por serem mulheres e solteiras. Ouvi que tudo o que há na região é voltado para a criação de gado – isso é uma tragédia. É esse tipo de entendimento do que é desenvolvimento que vem desmatando e descaracterizando toda a região. Não há, por exemplo, mais castanheiras, um símbolo local, a não ser nas reservas indígenas. Aquela era uma região de mata fechada, uma das mais ricas em termos de biodiversidade da Amazônia, e agora é um grande pasto.
Em relação à mulher, acredito que um processo importante de emancipação foi interrompido com o massacre sofrido naquela região durante a guerrilha. As guerrilheiras plantaram uma semente naquelas mulheres em relação a seus direitos e à importância da educação. Essa semente está plantada.
São Geraldo do Araguaia, Marabá, São Domingos do Araguaia, no Pará, e Bacaba (atual Caseara, no Tocantins) foram as cidades em que as atrizes conviveram com sobreviventes da guerrilha. Vocês perceberam os hábitos culturais desses moradores?
Não estive tanto tempo nessas regiões para poder falar profundamente sobre os hábitos culturais dos moradores. Enquanto estivemos lá, fizemos uma apresentação em praça pública em Xambioá [TO]. O secretário de Educação da cidade, Paulo Lucena, abraçou nossa proposta e nos ajudou com todo o possível. No dia do evento a praça estava lotada, mas, é claro, éramos uma novidade – e isso conta. É difícil falar em hábitos culturais em cidades tão carentes de atividades culturais. Não existem salas de cinema, não existem teatros com uma programação em andamento nem bibliotecas públicas de qualidade. Não há incentivo nas escolas para educar os alunos culturalmente. Acredito que essa mesma realidade se aplique à maioria das cidades do país, mesmo no Sudeste.
Mas posso dizer que, por outro lado, existem pessoas muito fortes abrindo outros caminhos. Aquela é uma região muito rica – e por isso muito explorada. A questão mineral, a questão da terra, tudo isso está muito presente no pensamento e no corpo das pessoas, e elas transformam isso em arte. O que percebi é que a arte e a política estão muito relacionadas, uma alimenta a outra em algum sentido. Essa relação é mais presente lá do que aqui no Sudeste.
(Foto: Elisa Mendes)
O que mais a impactou na realização dessa peça, colocando-se na perspectiva da guerrilha e como mulher em um cenário totalmente machista?
O que mais me impactou foi a noção de que a guerrilha não acabou e de que a justiça é seletiva. Uma das camponesas que entrevistamos fala que a guerrilha não acabou, que ela continua – pior do que aquela, só que camuflada. Isso revela a situação de violência, repressão e ausência de direitos a que essa população é submetida em um Estado que se diz democrático.
Ir a esse Brasil profundo desmistifica algumas verdades e ilusões que insistimos em repetir, como a sensação de que o povo brasileiro não luta pelos seus direitos. Luta. E muito. Mas é sempre massacrado por uma violência desproporcional vinda do Estado. E as lutas parecem ser as mesmas de anos atrás. A terra continua a ser tomada por grandes empresas, as mulheres continuam sendo violentadas, a polícia e o Exército ainda avançam para cima do próprio povo. “O tempo de aprender”, como fala uma das camponesas, ainda não chegou.