Erminia Silva e Daniel de Carvalho Lopes refletem os impactos das tecnologias no Circo, pensando na produção imagética, sustentabilidade e precariedade de políticas voltadas para os artistas deste setor.
Publicado em 06/12/2021
Atualizado às 17:43 de 15/08/2022
por Erminia Silva - https://orcid.org/0000-0003-3661-1623
e Daniel de Carvalho Lopes - https://orcid.org/0000-0002-2137-2060
Em 1909, o Circo Spinelli tinha como diretor artístico o multiartista Benjamim de Oliveira. Umas das grandes atrações tecnológicas do momento eram as projeções elétricas exibidas na montagem da opereta A viúva alegre no palco/picadeiro do circo.
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Ao longo da história, as artes em geral sempre se muniram das mais variadas produções tecnológicas, e a arte circense, em especial, incorporou e foi protagonista de todas elas: dos carros puxados por animais aos mais grandiosos navios; das projeções elétricas do cinematógrafo às composições holográficas; do rádio à televisão; da indústria do disco ao cinema; dos toldos de algodão às estruturas hidráulicas e comandadas por controle remoto.[1]
No entanto, a covid-19 colocou a população mundial em choque com o seu aterrorizante ineditismo, expôs nossa fragilidade para enfrentá-la e tem disparado outros processos de sociabilização atravessados pelo mundo virtual. É instigante pensar no quanto era inimaginável que estaríamos vivendo uma relação com as ofertas tecnológicas (como as digitais) que colocaria os artistas circenses diante de novos experimentos, considerando que durante mais de 200 anos experienciaram outros eventos pandêmicos. A gripe espanhola, ocorrida mais de cem anos atrás, não trouxe o mesmo desafio que o atual contexto tecnológico tem colocado para os artistas: a possibilidade de criar respostas artísticas diante da imposição do distanciamento social, que tem implicado a efetiva construção virtual do modo de produção das vidas, das artes e das reexistências.
Hoje, experimentamos uma vida em grande parte mediada pelas mais variadas e complexas plataformas digitais de comunicação.
Entretanto, o segmento artístico circense, historicamente desprivilegiado sob o ponto de vista das políticas públicas, é um dos mais impactados negativamente na atual conjuntura política do nosso país, o que resulta em construções de vidas precarizadas.
Paradoxalmente, apesar desse desprestígio, foram os circenses que, durante mais de dois séculos, nas suas mais diferentes origens e produções, promoveram prazeres, magias e experiências culturais inéditas.
Sob outro olhar, diante da íntima relação entre o desenvolvimento tecnológico e a construção das várias linguagens artísticas em suas contemporaneidades, uma pergunta nos parece relevante em meio a várias possíveis: nessa relação entre tecnologia e linguagem circense, qual é mais valorizada na sociedade atual? Uma possível resposta é que, por mais que consideremos a importância do fazer artístico como produção de vidas e de reexistências, ao longo da história e principalmente no atual momento de crise sanitária, o que se observa é uma priorização da relação entre tecnologia (na sua dimensão instrumental) e arte segundo lógicas que elegem a natureza mercadológica desse encontro. Antes de tudo, para adquirir valor, é preciso ser mercadoria – e isso inclui os corpos artísticos.
Temos vivido um dos efeitos mais negativos dessa relação, a exclusão de quem não consegue se colocar nesse processo de valorar a própria vida como mercadoria. Nessa dimensão, alguns grupos artísticos são mais vulnerabilizados que outros, como é a situação da maioria dos circenses, em particular dos pequenos circos itinerantes com ou sem lona e dos artistas que vivem da sua atividade no espaço da rua.
Por tudo isso, discorrer sobre tecnologia e/ou sobre arte não é tarefa simples. E fica ainda mais complexa quando entendemos que a questão da tecnologia não se refere única e exclusivamente a um instrumento que seja útil para fazer certas coisas, como um celular ou computador, mas antes de tudo a saberes, se nos abrirmos para imaginar que eles são também tecnológicos e que possuem uma materialidade distinta dos instrumentos. Isto é, o saber antecede o instrumento que é a expressão de sua potência de criá-lo. Assim, queremos ampliar a percepção de que tecnologia é também um campo de saberes aplicáveis em sua dimensão de produção de instrumentos e de relações, e, nesse sentido amplo, é possuidora, antes de tudo, de uma importante dimensão imaterial.[2] Essa outra percepção sobre as tecnologias vai bem além da luz elétrica, pois permite uma abertura para compreendermos a própria expressão do corpo em sua rica dimensão sensível, em suas expressões estéticas e comunicativas, inclusive como alta tecnologia humana – como nos ensina a Palhaça Rubra.[3]
Diante do amplo e complexo espectro das artes e das tecnologias, percebemos o quanto elas permanecem em forte simbiose: a tecnologia presente na composição dos fazeres artísticos; o fazer artístico constituindo o tecnológico; e, em meio à pandemia, a tecnologia da informação veiculando e servindo de palco ou interface para a transmissão das diversas expressões e produções artísticas.
Vale uma consideração importante: muitas formações artísticas e festivais de dança, circo, música e teatro estão em alta no momento, mobilizando muita gente de Norte a Sul do país por meio de plataformas virtuais, e, em decorrência disso, novos públicos estão surgindo e acessando esses trabalhos artísticos. Portanto, é de extrema importância refletir sobre o significado e as consequências desta realidade para essas produções. Será que estamos vivendo um "efeito" pandêmico transformador? As tecnologias têm se tornado aliadas na ampliação e na valorização das artes na sociedade? Se já temos as artes mobilizadas fortemente tanto por meio das plataformas digitais quanto pelo desafio de criar novas linguagens para esse contexto, isso tem sido reconhecido como positivo ou como nefasto para o fazer artístico e sua expressão e inovação? Esses enigmáticos questionamentos se tornaram fundamentais neste momento e seus desdobramentos serão vistos com o avançar do tempo, de modo que obviamente não daremos conta de todos eles neste texto.
No entanto, nessa expressiva simbiose entre arte e tecnologia que presenciamos nas circunstâncias atuais e que, com grande certeza, balizará esses dois campos no futuro, duas questões básicas se impõem. Será que todas as pessoas produtoras de artes que não possuem acesso direto ou facilitado às tecnologias da informação e, obviamente, necessitam sobreviver de seu ofício no presente momento terão chances de reexistir? E, se arte e tecnologia são elementos fundamentais na história de diversas civilizações – e, principalmente, na atual crise sanitária mundial –, por que há um efetivo abandono da arte e do artista na nossa sociedade?
Tratando de forma mais direta esses dois pontos interrogativos por meio de um olhar para a arte circense no país, partilhamos a seguinte consideração: mesmo diante das inúmeras produções circenses – sejam artísticas, sejam formativas – de extrema importância e relevância para a sociedade, imperam o descaso e o abandono por parte do poder público em relação a essas atividades e seus milhares e diversos artistas. Muitos artistas e formadores circenses ainda sofrem com a falta de acesso a recursos tecnológicos primordiais para realizar o seu trabalho nos rincões deste país. Assim, como resultante dessas forças, temos evidentemente uma dupla corrente contrária que impõe à arte circense um esforço de Hércules e um salto acrobático ainda mais extraordinário para manter-se viva na atualidade.
Na pulsante simbiose entre tecnologia e arte que vivemos e de que necessitamos ainda há muito o que fazer, especialmente na busca por um acesso democrático aos seus vários instrumentos e, ao mesmo tempo, por garantias que permitam o desenvolvimento tecnológico na sua imaterialidade, como em saberes e processos relacionais produzidos por parte dos muitos coletivos que constituem, em sua diversidade, o mundo circense.
Garantias que exigem a construção de propostas positivas por parte do poder público, considerando-se o circo um patrimônio imaterial da cultura brasileira e um lugar de criação e invenção de novos modos de se fazer arte. Isso demanda políticas e financiamentos que reconheçam e facilitem esse potencial.
É preciso ver as produções circenses em toda a sua diversidade e, para isso, compreendê-las a partir dos seus diferentes segmentos, formas de fazer artístico e demandas em função dos modelos de trabalho e de organização. O circo, como um todo, precisa de projetos políticos e programas consistentes, e não apenas de editais, excludentes por natureza.
Dessa forma, devemos ampliar a luta por garantias que sejam aliadas nucleares da potência constitutiva do fazer artístico como campo inovador de modos de existir, animador da produção de mais vidas nas vidas vividas e, como tal, campo de experiências sociais que podem gerar modos de reexistência mais interessantes e que impeçam a aniquilação indiscriminada de grupos e coletivos sociais. Isso toca de perto a arte circense, sem dúvida.
Apesar de tudo, nessa simbiose, ainda bem que podemos conhecer e ver o multiartista circense Benjamim de Oliveira por meio de uma exposição virtual sobre sua vida e obra no projeto Ocupação Itaú Cultural. Quem diria, Benjamim, que depois de mais de cem anos de suas inovadoras projeções elétricas na opera A viúva alegre poderíamos conhecer suas artes, seus fazeres e seus saberes por meio da tela de celulares e computadores? Hoje podemos, de modo virtual, sentir sua força criadora e sua tecnologia humana adquirirem mais visibilidade perante a sociedade brasileira.
Enfim, como bem cantou Belchior: "Deixemos de coisa, cuidemos da vida, pois senão chega a morte ou coisa parecida e nos arrasta, moço, sem ter visto a vida".[4]
Expediente da Revista Observatório 30
Como citar este artigo
LOPES, Daniel de Carvalho; SILVA, Erminia. Arte e tecnologia: itinerários de reexistências e transformações na arte do circo. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. Disponível em: [https://www.itaucultural.org.br/arte-e-tecnologia-itiner%C3%A1rios-de-reexist%C3%AAncias-e-transforma%C3%A7%C3%B5es-na-arte-do]. Acesso em: [data_atual]. DOI: https://www.doi.org/10.53343/100521.30.09
Erminia Silva é da quarta geração circense no Brasil, filha de Barry Charles Silva. Doutora em história social da cultura pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp) e co-coordenadora do site Circonteúdo – o Portal da Diversidade Circense; do Circus – Grupo de Pesquisa em Circo, da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp; e do Grupo Psircos. É professora do Instituto Cultural Escola Livre de Palhaço (Eslipa) desde 2012 e autora de diversas publicações que estão disponíveis on-line em: www.circonteudo.com.
Daniel de Carvalho Lopes é graduado em educação física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em artes pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP). É integrante, desde 2006, do Circus – Grupo de Pesquisa em Circo, da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp, e co-coordenador do site Circonteúdo – o Portal da Diversidade Circense.
Referências
LOPES, Daniel de Carvalho. A contemporaneidade da produção do Circo Chiarini no Brasil de 1869 a 1872. 2015. Dissertação (mestrado em artes cênicas) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2015.
LOPES, Daniel de Carvalho; SILVA, Erminia. Um Brasil de circos: a produção da linguagem circense no Brasil do século XIX aos anos de 1930. Campinas: Prêmio Funarte de Estímulo ao Circo 2019. No prelo.
MERHY, Emerson Elias. En busca del tiempo perdido: la micropolítica del trabajo vivo en acto en salud. In: FRANCO, Túlio Batista; MERHY, Emerson Elias. Trabajo, producción del cuidado y subjetividad en salud. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2016.
SILVA, Erminia. Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo: Altana; Rio de Janeiro: Funarte, 2007.
[1] A respeito das incorporações diversas realizadas pelos circenses, ver: SILVA (2007), LOPES (2015) e LOPES & SILVA (no prelo).
[2] Ver: MERHY, 2016.
[3] Lu Lopes, atriz, roteirista, musicista, improvisadora, palhaça e escritora conhecida artisticamente como Palhaça Rubra, afirma: “Dentro do nosso corpo, temos disponíveis gratuitamente tecnologias que geram autonomia criativa. São as tecnologias humanas. A ativação dos pilares complementares criativos no nosso organismo gera alta tecnologia humana". Informação verbal fornecida pela artista em 15 jul. 2021.
[4] Versos da música "Na hora do almoço", do cantor e compositor Belchior, gravada no disco intitulado A palo seco, de 1974.