Artista plástica e arte-educadora, Ordalina Cândido encara a arte e a cultura como ferramentas capazes de transformar indivíduos e...
Publicado em 07/04/2017
Atualizado às 12:27 de 24/08/2017
por Andréia Briene
Artista plástica e arte-educadora, Ordalina Cândido encara a arte e a cultura como ferramentas capazes de transformar indivíduos e comunidades. Além de abordar a realidade dos marginalizados em suas pinturas, ela integra a diretoria da Rede Cultural Beija-Flor – instituição sem fins lucrativos que realiza, nas regiões de Diadema e Itanhaém, uma série de projetos em prol do desenvolvimento de crianças e jovens inseridos em meios que sofrem com problemas de violência, drogas e infraestrutura, entre outros.
(Foto: Isabelli Gonçalves)
Nesta entrevista, Ordalina fala sobre questões como o seu processo de criação e a pouca visibilidade da obra de artistas que, nas bordas da cidade e do mercado, atuam como seus próprios produtores.
Sexagenária, negra e moradora da periferia de Diadema, Ordalina é autora de obras que pertencem a acervos da Austrália, do Canadá, da Dinamarca, da França, da Inglaterra, da Noruega, de Portugal e da Suíça.
(Foto: Isabelli Gonçalves)
Quais foram os seus principais desafios para se estabelecer como artista plástica?
Sou uma artista em um meio em que a arte ainda é vista como algo distante. Não existe um hábito de se relacionar com produções artísticas na comunidade em que atuo. E sou autodidata. Na primeira vez que fui pintar em público me senti um peixe fora d’água. As pessoas me olhavam, curiosas, e não tive outra escolha a não ser acreditar em mim mesma.
E como é o seu processo de criação?
Primeiro penso na reflexão que quero gerar, só depois trabalho na tela. Exponho o meu “eu” e pretendo fazer com que cada pessoa enxergue na obra o seu próprio “eu”. Como autodidata, sou levada pelas reflexões que a vida traz. Observo as dores, os cortes do dia a dia, e transfiro para a tela os indivíduos marginalizados, que não têm onde morar. Já fiz exposições – em São Paulo e em outras cidades fora do país – mostrando a favela, as pessoas que vivem na rua. E o público ficou chocado, queria saber se aquilo era real.
Vivemos em uma sociedade preconceituosa, e o fato de eu ser uma mulher negra que vive da arte gera questionamentos, estranhamento, e mostrar meu trabalho é uma luta diária.
(Foto: Alan Ziro)
O que te motivou a trabalhar com as crianças da Fundação Casa?
Estudei num colégio rico e, quando me coloquei no lugar daquelas crianças, percebi que poderia ajudá-las compartilhando de alguma forma o que tinha aprendido, já que a minha história era muito parecida com a de muitas delas – perdi meu pai e minha mãe, que trabalharam duro para sustentar a família. Trabalhei dez anos com elas e vi que cada uma trazia uma marca, cada uma queria uma mãe ou queria ser alguma coisa. Foi uma experiência gratificante, sentia que o meu trabalho dava um norte para aquelas pessoas.
Foram anos de alegrias e de aprendizado mútuo, nos quais compreendi o significado de “doação” – de doar alegria, de doar amor, esquecendo um pouco de si mesmo.
(Foto: Alan Ziro)
Como é o trabalho que você desenvolve com mulheres moradoras de Diadema?
São basicamente oficinas de pintura voltadas para mulheres que estão numa região periférica – mães que já perderam marido ou filhos para a violência do mundo, mulheres batalhadoras excluídas pela sociedade. Nessas atividades elas são empoderadas, recebem palavras para seguir em frente.
Meu desejo é conseguir fazer com que essas pessoas se renovem, consigam falar e ouvir. Se você consegue transformar alguém, você também se transforma.
(Foto: Alan Ziro)
Qual é a sua relação com a Rede Cultural Beija-Flor?
Faço parte da diretoria da instituição. A Beija-Flor é minha segunda casa, é onde passo meus conhecimentos aos alunos e aprendo ainda mais com eles. Lá conheci muito mais o mundo das crianças, além de ter mais contato com o universo indígena. Fizemos, por exemplo, trabalhos com um povo indígena que habita uma região próxima ao litoral paulista. Levamos as crianças para conhecer a aldeia, a oca, a cultura daquelas pessoas. Eu mesma tive a oportunidade de ficar nessa aldeia, foi uma grande experiência – quando a gente tem a oportunidade de estar no lugar do outro, a convivência é bem mais ampla e profunda.
Também realizamos uma série de oficinas voltadas para crianças e jovens da região [Diadema e Itanhaém]. Nos encontramos duas vezes por semana, em aulas com duas horas de duração. A gente busca transformar a arte em uma forte ferramenta de educação e transformação na vida dessas crianças e jovens.
align="center" />(Foto: Alan Ziro)
Como artista, você acredita que as políticas culturais dialogam com o universo no qual você está inserida?
Não falta talento e vontade, mas percebo que diversas demandas dos artistas não são atendidas – e nós temos necessidade de aprendizado, de investimento, de pesquisa. Muitos se veem obrigados a optar entre continuar seu trabalho artístico ou abandonar isso para arrumar um emprego, garantir um salário no fim do mês e conseguir sobreviver.
Alguns dos alunos que se formaram na Beija-Flor, por exemplo, estão dando aulas de arte e, apesar das dificuldades, mantêm uma produção artística. Porém, infelizmente, muitos outros tiveram que abandonar a arte e buscar outras formações e atuações profissionais.
Assim, penso que as políticas culturais precisam dialogar mais para que os artistas, independentemente de onde estiverem, tenham as mesmas oportunidades de desenvolver seus projetos. Além disso, é necessário que essas políticas aproximem a produção artística da comunidade local, pois é por meio da arte que tudo evolui.
(Foto: Alan Ziro)
Como você avalia os modelos de financiamentos a projetos culturais?
A minha percepção é de que os projetos culturais deveriam ter um maior investimento e mais oportunidades de ser vistos, mas o lugar de onde falo é um em que nós mesmos arcamos com os custos dos nossos projetos. São poucos os recursos e, para tentar burlar essa escassez, eu busco utilizar materiais mais baratos – já usei a madeira das casas da comunidade como tela para a minha pintura A Favela na Parede da Favela.
A minha percepção é de que os projetos culturais deveriam ter um maior investimento e mais oportunidades de ser vistos, mas o lugar de onde falo é um em que nós mesmos arcamos com os custos dos nossos projetos. São poucos os recursos e, para tentar burlar essa escassez, eu busco utilizar materiais mais baratos – já usei a madeira das casas da comunidade como tela para a minha pintura A Favela na Parede da Favela.
Enfim, apesar de ser esse o cenário que muitos artistas – como eu – enfrentam, temos de ser persistentes, aproveitar as oportunidades de aprender e conquistar aos poucos novos espaços, saindo devagar da nossa vizinhança, sem se deixar abater pela pouca valorização da educação e da cultura e pela falta de continuidade das políticas culturais.
(Foto: Alan Ziro)