Projeto selecionado pelo edital 2017-2018 do Rumos busca pensar um teatro da floresta em conjunto com os povos ribeirinhos da Amazônia paraense
Publicado em 02/04/2019
Atualizado às 16:09 de 02/04/2019
por Marina Lahr
Esse rio é minha rua
Minha e tua, mururé
Piso no peito da lua
Deito no chão da maré
Os versos da canção “Esse Rio É Minha Rua”, criada por Paulo André e Ruy Barata e famosa na interpretação de Fafá de Belém, narram poeticamente uma realidade muito comum das regiões amazônicas: o rio como eixo central do cotidiano ribeirinho. A convivência em meio às árvores, aos animais e a todas as riquezas da mata cria um extenso universo particular de cultura, tradições e hábitos característicos das regiões envolvidas pelos rios.
Esse lirismo das águas na vida das populações que sobrevivem a partir das condições oferecidas pela natureza é, essencialmente, a perspectiva predominante no projeto Mambembarca – uma caravana fluvial que vai levar a 12 cidades localizadas nas margens do Rio Amazonas, no Pará, espetáculos teatrais de temática amazônica que representam os costumes e a oralidade dos povos da floresta.
Idealizada por Alberto Silva Neto, ator, diretor e professor de teatro, a iniciativa marca os 30 anos do grupo Usina, companhia de teatro paraense fundada em 1989 e cuja trajetória foi construída pela experimentação da linguagem cênica e pela atenção dada às questões humanas e sociais. Cofundador do grupo, Alberto conta que a longevidade merece uma comemoração e Mambembarca é como um presente.
“Nos últimos 15 anos, nós do Usina iniciamos uma imersão, desenvolvendo uma investigação das possibilidades de compreender e expressar cenicamente as singularidades dos povos da floresta. O grupo se volta para o teatro em uma poética que se debruça sobre os modos de vida e as condições humanas de quem habita a Amazônia”, explica o diretor.
A decisão de retratar teatralmente a realidade dos ribeirinhos despontou através da necessidade de abordar as problemáticas características desse contexto, principalmente dos conflitos que surgem entre povos nativos e os agentes de exploração da mata. Nesse sentido, os espetáculos escolhidos para compor a caravana são integralmente representativos das populações amazônicas, ainda que apresentados por diferentes ângulos, e buscam despertar uma consciência ambiental.
“Os roteiros e as construções são completamente distintos, tanto em sua forma quanto em sua fonte dramatúrgica, mas são todos olhares que se complementam para retratar e pensar a cultura amazônica”, esclarece Alberto Silva Neto, que dirige também Solo de Marajó, Pachiculimba e Parésqui, todas integrantes do projeto. A quarta e última peça presente na caravana é Dezuó, Breviário das Águas, criação do coletivo paulista Macabéa, que versa sobre os impactos da Usina de Belo Monte, no Pará, e que foi convidado para participar por se relacionar teatral e substancialmente com os fundamentos da iniciativa.
O antagonismo entre os caboclos que se preocupam com a proteção e a preservação da floresta e o “sistema predatório”, como descreve Alberto Silva Neto, é uma das ênfases que o Usina pretende dar em seu caminho pelo Rio Amazonas – deslocamento extenso de quase 1.000 quilômetros por uma região cujos habitantes somam 2,2 milhões de pessoas e que compreendem mais de 25% da população paraense atual.
“O ser humano já está na Amazônia há 11 mil anos. Se ela está ainda preservada atualmente, mesmo que não em sua totalidade, é porque os povos que lá se criaram dominavam técnicas muito sofisticadas de relação com o meio ambiente, quase como uma tecnologia de conservação. Por isso, elegemos locais e habitantes muito singulares e muito próximos do que exploramos em nossos espetáculos. A temática amazônica envolve realmente um conflito entre o sistema consciente e o sistema agressor, e a população fica no meio dessa divisão. Pensando nesse sentido, prezamos pela cultura amazônica em si; buscar compreender que ser humano é esse, como ele se relaciona com a vida que ele leva e como os caboclos se posicionam diante das questões do mundo. É fundamental retratar essa realidade”, explica o teatrólogo.
A escolha pelo meio de locomoção fluvial, com barcos que irão percorrer a região metropolitana de Belém até chegar a Santarém – a segunda mais importante cidade do Pará e principal centro cultural do oeste paraense –, não foi por acaso. Os obstáculos característicos da viagem, com locais de difícil acesso e sem estrutura de rodovias que facilitam a chegada aos povoados parece, à primeira vista, o motivo principal para justificar a navegação pelas águas. Mas, como explica o idealizador de Mambembarca, a dimensão da caravana é simbólica.
“Podemos legitimar o uso de barcos por ser a forma mais prática e eficiente de se locomover nessas localidades, é claro. Mas, em primeiro lugar, é um meio de locomoção lírico, que possui uma dimensão poética, pois estaremos fazendo o trajeto em um meio de transporte muito próximo da cultura das populações ribeirinhas e amazônicas”, descreve Alberto Silva.
Essa aproximação do dia a dia ribeirinho é, inclusive, outro destaque do projeto contemplado pelo programa Rumos Itaú Cultural. Alberto conta que a motivação central no desenvolvimento das atividades foi a possibilidade de conexão efetiva com aqueles que inspiraram as histórias encenadas.
“O projeto Mambembarca significa um contato com a realidade, como se estivéssemos levando o teatro e as discussões sociais àqueles que inspiram as peças. É significativo para nós a possibilidade de encontrar as pessoas que são espelho para nossas encenações. Existe, antes de tudo, o desejo de ir para além das fronteiras, físicas e mesmo aquelas invisíveis. Penso, metaforicamente, como se fosse uma viagem para dentro. Estamos saindo do centro urbano e adentrando os rios, mergulhando interiormente. Nós vamos colocar nosso teatro em contato com a própria origem”, reflete o diretor.
Para fortalecer o vínculo das peças teatrais com os povos da floresta, a iniciativa vai ainda promover ações paralelas às apresentações públicas dos espetáculos. No total serão 48 encenações das montagens integrantes de Mambembarca e todas serão complementadas com conversas informais após o encerramento. Dessa forma, o grupo Usina pretende dar espaço às pessoas, procurando compartilhar experiências e pensamentos e estabelecer relações com o cotidiano das populações amazônicas. É, como elucida Alberto Silva, um teatro de natureza política, uma arte pública, que coloca como prioridade aqueles que normalmente não têm acesso à cultura.
“A finalidade maior do nosso projeto é promover o teatro como um veículo de discussão e reflexão, tanto cultural quanto política e social. As oficinas em cada cidade constituem um viés pedagógico, voltadas para estimular os difusores de cultura, os multiplicadores de ideias e questões e, claro, ajudar no amadurecimento do pensamento ribeirinho ante as problemáticas de suas realidades. Essa dimensão pedagógica é muito importante. Por isso, não é meramente um show. É claro que a distração e o entretenimento são legais, mas nosso projeto quer impactar de forma diferente a vida das pessoas. Queremos que nossa passagem construa outros sentidos e possibilidades de compreender as questões sociais, colocando a arte em contato profundo com o pensamento de seu público”, finaliza o responsável pelo projeto.
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A caravana Mambembarca sobe o Rio Amazonas, de Belém a Santarém, percorrendo cinco municípios da Ilha de Marajó e outros cinco da mesorregião do Baixo Amazonas entre 3 de julho e 27 de agosto de 2019, levando gratuitamente quatro espetáculos e oficinas de teatro a 12 municípios do Pará.