Luísa Pécora relembra seu primeiro encontro com Helena Ignez, em 2018, e reconta a trajetória da atriz
Publicado em 29/09/2021
Atualizado às 17:44 de 17/08/2022
Meu primeiro encontro com Helena Ignez ocorreu há cerca de três anos, em uma tarde de agosto de 2018. Ela lançava seu quinto longa-metragem, A moça do calendário, e eu iria entrevistá-la em seu apartamento, próximo à Praça Roosevelt, no centro de São Paulo (SP). Como parte da preparação para a entrevista, li dezenas de textos publicados sobre Helena ao longo dos anos. E nesse processo notei a constante repetição de uma mesma palavra: musa.
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Helena já tinha mais de cinco décadas de carreira no cinema e no teatro, mas parecia ser tão ou mais comumente identificada como musa do que como atriz, diretora, roteirista ou produtora. Em geral, a variação era quanto à musa de quem ou do que – do cinema brasileiro, do Cinema Novo, do Cinema Marginal ou dos diretores Glauber Rocha (1939-1981) e Rogério Sganzerla (1946-2004), com os quais se relacionou pessoal e profissionalmente.
Por isso, quando finalmente me encontrei com Helena, quis logo saber: você gosta de ser chamada de musa? “É péssimo, né?”, ela me respondeu. “Talvez para os musos seja ótimo ser muso, mas a mulher fica como um objeto do olhar, uma inspiração passiva. A voz da musa tem de ser o silêncio. Então, é muito perigoso ser musa.”
O silêncio não combina com Helena Ignez, uma mulher inteligente, ousada e dona de um espírito livre e independente que se traduziu nos filmes que fez, tanto em frente quanto por trás das câmeras. Do primeiro trabalho no cinema (O pátio, de Glauber Rocha, lançado em 1959) ao mais recente longa-metragem como realizadora (Fakir, de 2019), passando por personagens icônicas como Janete Jane, Sonia Silk e Ângela Carne e Osso, Helena sempre foi autora.
Virada de chave
Tem sido interessante acompanhar a mudança no modo como a imprensa e o público encaram e discutem a carreira de Helena Ignez. Nos últimos anos, mais gente tem exaltado o protagonismo da artista e deixado de pensar nela apenas como a mulher que serviu de inspiração para cineastas homens. Essa mudança se deve a diferentes fatores, que incluem o fortalecimento do debate sobre gênero no cinema, o maior acesso aos filmes de Helena como diretora (no momento em que escrevo este texto, é possível ver diversos títulos gratuitamente em plataformas como Itaú Cultural Play, Spcine Play e Sesc Digital) e homenagens, eventos e obras de outros artistas que buscaram rever e apresentar sua trajetória.
Uma das homenagens ocorreu em 2017, quando Helena recebeu um troféu especial no Grande prêmio do cinema brasileiro. No palco, ela disse não ter sido fácil ser reconhecida por sua própria identidade após os casamentos com Glauber e Rogério. “[Minha carreira] foi uma grande luta pela independência, pela minha identidade feminina”, afirmou. No mesmo ano, Helena Ignez tornou-se nome de um prêmio anual da Mostra de cinema de Tiradentes, criado para destacar o trabalho das mulheres no audiovisual.
Sua obra tem ganhado retrospectivas em diferentes festivais, como o Cinefantasy – festival internacional de cinema fantástico, realizado agora em setembro, mesmo mês em que foi lançado o livro Helena Ignez, atriz experimental (Edições Sesc São Paulo, 65 reais), no qual os pesquisadores Pedro Guimarães e Sandro de Oliveira analisam principalmente o trabalho da artista em frente às câmeras.
Além disso, no ano passado uma das filhas de Helena, Sinai Sganzerla, realizou um projeto antigo de narrar a trajetória da mãe em um documentário, apropriadamente intitulado A mulher da luz própria. “Ela ficou muito tempo sendo colocada na posição de ex-mulher do Glauber e de mulher e viúva do Sganzerla, mas é muito mais do que isso: ela tem papel de protagonismo no cinema brasileiro”, afirmou Sinai numa conversa que tivemos há alguns meses. “Achava que a história dela tinha de ser contada, até de forma didática, abordando também a dificuldade que teve para se estabelecer como mulher no cinema.”
Para ver na Itaú Cultural Play
Foi depois dos 60 anos, já com uma consolidada carreira como atriz, que Helena começou a escrever e a dirigir. Seu primeiro trabalho por trás das câmeras foi o curta documental Reinvenção da rua, lançado em 2003, mas as primeiras filmagens que fez são da década de 1970.
Essas imagens podem ser vistas em A Miss e o dinossauro – bastidores da Belair, um dos filmes disponíveis no catálogo da Itaú Cultural Play, a plataforma de streaming do Itaú Cultural (IC). Lançado apenas em 2005 e filmado em super 8, o curta de 18 minutos registra o espírito criativo da produtora que Helena fundou em parceria com Sganzerla e Júlio Bressane. Em 1970, antes que os artistas partissem para o exílio por causa da ditadura militar, a Belair lançou obras fundamentais do cinema brasileiro, como Copacabana mon amour, Sem essa, aranha, A família do barulho e Cuidado madame.
Os autores de Helena Ignez, atriz experimental argumentam que, embora Helena nunca tenha sido creditada como realizadora nos filmes da Belair, ela “determinava os rumos da mise-en-scène pelo fato de ter um tipo de jogo característico, possuir uma personagem amplamente solidificada e estabelecer relações de proximidade com os cineastas com quem colaborou”. “Ela era criadora da forma fílmica dos filmes da Belair, agindo sub-repticiamente para determinar o olhar que os diretores com quem trabalhava portavam sobre ela”, diz a obra.
Outro título disponível no catálogo da Itaú Cultural Play é Luz nas trevas: a volta do Bandido da Luz Vermelha (2010), continuação do clássico lançado por Sganzerla em 1968. Partindo de um roteiro deixado por ele, e dividindo a direção com Ícaro C. Martins, Helena volta ao personagem 30 anos depois. Agora vivido por Ney Matogrosso, o Bandido está na prisão há décadas e tem um filho, conhecido como Tudo ou Nada, que busca seguir seus passos.
Matogrosso também é o protagonista de Poder dos afetos (2013), o terceiro filme dirigido por Helena que pode ser visto na Itaú Cultural Play. O cantor interpreta um barão que, depois de passar anos na Bélgica, retorna ao Brasil para criar uma comunidade alternativa em uma fazenda. Com 31 minutos de duração, o média-metragem foi usado na captação de recursos para o longa Ralé (2015), que expandiu a história do barão e de um grupo de jovens que rodam um filme em sua fazenda.
Muitos dos longas dirigidos por Helena dialogam com o teatro, a literatura e a filosofia. Ralé faz alusão à obra de Máximo Gorki; Canção de Baal (2007) revê Bertolt Brecht; e A moça do calendário (2018) combina um roteiro de curta escrito por Sganzerla (e, por sua vez, baseado em contos de Luis Antonio Martins Mendes) com elementos da obra do filósofo Byung-Chul Han. Junto com essas referências culturais e teóricas, há também autorreferências e citações aos filmes que fez com Sganzerla antes, durante e depois da Belair.
Não há, no entanto, nostalgia ou saudosismo no trabalho de Helena: qualquer releitura do passado está sempre inserida na atualidade. “As preocupações estéticas da Helena-diretora não estão distantes daquelas da atriz, mas retrabalhadas para ressignificarem num mundo diferente daquele que viu nascer os filmes dos anos 1970”, escrevem Guimarães e Oliveira em Helena Ignez, atriz experimental. “O gosto pelos excluídos, pelos comportamentos considerados ‘desviantes’ e excessivos e pelas mulheres fortes e sensuais segue intacto. A Helena diretora propõe, no entanto, um diálogo afirmado com textos teatrais, ausente do espírito Belair, mas condizente com a reflexão e prática de uma atriz que nunca abandonou os palcos. De criadora de signos visuais e simbólicos através do seu corpo, voz e persona, Helena Ignez converte-se em acumuladora e difusora de outros signos, dessa vez contando com o corpo de outros atores e ícones da música e do teatro brasileiros.”
Brasil eterno
Essa afinidade com os excluídos e os comportamentos que o conservadorismo tenta combater está no centro da obra de Helena. Em uma passagem de A mulher da luz própria, ela diz sentir uma “ligação com os injustiçados”. “É a eles que realmente amo”, definiu.
Ficcionais ou documentais, seus filmes abordam questões sociais, de gênero, de raça e de orientação sexual, assim como as ligadas à urbanização, à ecologia, à desigualdade e à precarização das relações de trabalho. Suas histórias falam de múltiplos temas ao mesmo tempo, adotando tom bem-humorado e em defesa da liberdade. “É sempre um bom momento para lançar um filme livre”, disse-me Helena em 2018, quando a extrema direita brasileira caminhava em direção ao poder. “Meu cinema é autoral, mas não é egoísta: é voltado para o outro.”
Que os filmes de Helena sempre pareçam ter sido rodados no momento em que os vemos, dialogando diretamente com questões contemporâneas, é um reflexo tanto desse olhar voltado para o outro quanto do que ela chama de “Brasil eterno” – ou seja, este país que tanto resiste em mudar. Aos 81 anos, Helena permanece engajada e ativa: seu longa mais recente, Fakir, é de 2019, e a peça mais nova, Insônia – Titus Macbeth, acaba de encerrar uma nova temporada on-line. São novas experiências na vida de uma artista que, segundo contou no documentário dirigido pela filha, tem o hábito de se perguntar: “Quem sou eu?”. “A resposta é mutante, não é a mesma”, explicou. “O trabalho é este: é descobrir a luz própria.”