O Coletivo Sistema Negro trabalha a arte e a cultura como ferramentas de combate ao racismo
Publicado em 03/11/2015
Atualizado às 14:50 de 13/10/2017
O Coletivo Sistema Negro trabalha a arte e a cultura como ferramentas de combate ao racismo. Em uma conversa com o Observatório Itaú Cultural, o grupo, formado por produtores culturais, artistas, empreendedores e educadores negros, fala um pouco de sua história e de como funcionam a gestão e a atuação do coletivo, além de aprofundar a discussão a respeito de políticas culturais e editais de financiamento nesse setor em relação à demanda de artistas negros.
Contem um pouco pra gente a história do Sistema Negro, quem compõe o grupo? Como o grupo surge? O que motivou sua criação?
O grupo foi formado no final de 2013 como um grupo de afinidades, somos amigos, negros, que durante um longo tempo vivenciamos o fato de sermos os únicos negros nos contextos culturais nos quais circulávamos, como artistas, produtores e educadores. Este quadro comum a todos evidenciou um panorama de pouco acesso a situações de protagonismo, e nos quais, por sermos os únicos negros éramos fetichizados ou silenciados, se considerarmos dois extremos. Além disso, sempre tivemos a preocupação com a crescente apropriação de elementos da cultura negra (religiosidade, música, costumes…), como mero entretenimento, por grupos formados apenas por pessoas brancas. Para fazer frente a isso começamos a nos reunir para traçarmos táticas de ocupação nas mais diversas frentes de ação, táticas para combater práticas racistas. Por meio da música, arte, cultura, educação e produção audiovisual temos o objetivo de desconstruir práticas racistas por meio de ações que valorizem e criem espaço para artistas negros ao mesmo tempo em que seja acolhedor e seguro para o público negro. Uma vez que a ampliação da presença de negros na economia das classes médias não teve como acompanhamento a ampliação da presença de negros na produção e gestão cultural, de modo que fossem postos em xeque os padrões político-cuturais que caracterizam o cenário artístico/ativista existente na cidade de São Paulo. O surgimento do CSN decorre da necessidade de se alterar esse panorama.
Como funciona a gestão do grupo e qual sua atuação?
O Coletivo é formado hoje por dez pessoas, todos homens negros, e vale ressaltar isso pelo fato de que entendemos que a ausência de mulheres negras no grupo é fruto de questões estruturais relacionadas a práticas machistas e patriarcais com a quais lidamos, dia a dia, para superarmos. A gestão do coletivo é horizontal e não possuímos mecanismos rígidos de entrada ou saída. Muitas pessoas se aproximaram do grupo e fomos desenhando um núcleo ao longo de nossas experiências, de modo a considerarmos aptidões que se desenvolviam ao longo de nossas ações. Muitas pessoas entraram e deixaram o coletivo, enquanto outras contribuem esporadicamente.
Todos os integrantes podem propor ações que serão realizadas conforme a disponibilidade do grupo. Todos opinam e se disponibilizam conforme suas possibilidades. Uma vez que funções específicas não sejam definidas, todavia entre nós há quem tenha maior know how em comunicação, educação, criação audiovisual, discotecagem ou produção executiva, de modo a nos dar interesses orgânicos por certos campos de gestão e atuação dentro do grupo.
Iniciamos as atividades do coletivo como proposta de um "sistema de som" com o objetivo de promover festas/ocupações de rua. Mas percebemos que nossas capacidades e possibilidades de ação, considerando as expertises dos integrantes do grupo, eram muito maiores. O que nos levou a estabelecer parcerias para acão com outros coletivos e a experiência mais gratificante nesse sentido foi com Bicha Nagô que assinou uma pista conosco no SPnaRua esse ano e com quem estivemos juntos também na comemoração (rolezinho) de um ano do blog na Vila Matilde.
O coletivo tem um ano e meio de existência e estamos exercitando novas formas de ocuparmos todos os espaços possíveis. Temos muito o que aprender. Nossa crença na ocupação do espaço público advém da crença de que a desconstrução do racismo deve ser feita exatamente assim: de forma pública, ampla e irrestrita, por meio da ocupação de todos os espaços e contextos.
Agora em setembro, entre os dias 31 de agosto e 4 de setembro, a Funarte se reúne por meio do seu Centro de Programas Integrados, e com a Comissão de Seleção do Edital Bolsa Funarte de Fomento aos Artistas e Produtores Negros irá analisar os projetos habilitados. Na opinião do Sistema Negro, os editais de financiamento a Cultura e as artes atendem a demanda de artistas e produtores negros? Que caminho essa discussão tem de seguir?
É inegável que tais editais sejam um avanço muito valioso no sentido da diversificação da produção cultural que até então era financiada a partir de fundos públicos, é inegável também que há uma alteração qualitativa em criações de artistas negros contemplados por tais editais, visto que nós, negros, desde há muito somos os criadores de artes de dimensões modestas; isso se deve antes de tudo a infra-estrutura limitante historicamente colocada a nossa disposição. Este tipo de financiamento/premiação viabiliza a prática de projetos que requerem uma infra-estrutura mais portentosa ou que demandem equipamento de ponta.
Estamos em um importante momento de afirmação estética com implicações complexas a respeito das identidades em vias de valorização, visto que há uma mediação e ação de fitragem praticadas pelas instituições patrocinadoras que, com base nas propostas aprovadas determinam novas pautas, tópicos, modelos e práticas a serem valorizadas ou silenciadas, disso decorre o perigos de sermos cooptados dentro de um discursos que atendem apenas parcialmente a agendas e demandas da população negra. Em adição friso que tais editais são interessadamente moderados e alimentam enredos que tecnicamente dialogam formas estéticas que propões mais sobre o passado do que sobre os hibridísmos estéticos diante dos quais negro e negras contemporâneos se veem, com isso é endossada a figura do negro como ser preso e espaços e tempos bem determinados.
Todavia é digno de nota a abertura das instancias públicas a criação de contextos nos quais discursos que dominam são aplicados por aqueles que de fato vivem as desigualdades postas no seio da sociedade.
Como vocês enxergam a ocupação do espaço público por meio da cultura?
Nos últimos cinco anos proliferam por São Paulo coletivos com propósito da 'ocupação de espaço público', com um aumento significativo no período do carnaval. Ao confrontarmos o número de blocos carnavalescos que forma para as ruas em 2012 e com o mesmo número em 2015 percebemos um aumento acentuado no número de grupos que querem de alguma maneira ocupar as ruas, mesmo que seja por um breve período, como o carnaval. Consideramos as ocupações positivas e esse foi um foco exclusivo do coletivo por algum tempo: ocupar o espaço público. Entretanto, e como em diversos aspectos da cidade, o negro não esta representado nessas ocupações. Não podemos dizer coisas do tipo “A cultura é de todos” ou “A festa é aberta, democrática, aberta a todos”, enquanto temos uma participação reduzida de negros produzindo essas festas ou como público das mesmas. Se negros não produzem e não são público num país com mais da metade de sua população não-branca, então há algo errado ai. Existe algum mecanismo de exclusão operando e que impede a presença negra. É nesse recorte que surge o Coletivo Sistema Negro, com o intuito de produzir e incentivar o surgimento de outros coletivos que produzam e criem espaços com os quais negros e negras possam se identificar. Nos quais uma pessoa negra olhe para qualquer lado e seja capaz de ver outras pessoas negras.
Num outro sentido, devemos tomar cuidado com a palavra ocupação, pois ela traz a noção de que algo estava desocupado, sem uso. O espaço público está ocupado a todo momento. Caminhe pelo centro de SP em qualquer horário, tem vida, o espaço publico é a casa de algumas pessoas, portanto, nunca esta desocupado. Por isso buscamos estabelecer conexões com moradores de rua, ambulantes e também exercitar rodas de conversas e outras ocupações possíveis nas ruas.
E trazendo a negritude pro centro dessa discussão, quais ações do Sistema Negro vocês destacam nesse sentido?
Como dissemos um dos objetivos do Coletivo Sistema Negro e criar espaço para músicos, artistas e produtores negros. Ao mesmo tempo em que crie um ambiente seguro para o público negro. Mas percebemos que essas ações/ocupações precisariam ser contextualizadas e, por isso, decidimos que seria necessário também promovermos rodas de conversa para problematizarmos a presença negra e sua ausência na maior parte das situacões, mesmo quando cultura negra é protagonista. E esse percurso pode ser claramente percebido pelo nosso histórico de ocupações e pela maneira como o formato dessas ocupações também mudou. Nossa primeira festa foi uma 'infiltração' que fizemos durante a Virada Cultural 2014. Não fomos convidados e mesmo assim, sem qualquer tipo de autorização, montamos nosso sistema de som no Viaduto Santa Efigênia, fomos enquadrados pela polícia. A partir de então resolvemos promover rodas de conversa sobre essa questão, o que aconteceu em encontro que fizemos na bicicletaria/bar Las Magrelas e mais recentemente no SPnaRua.
Nos últimos tempos promovemos visita guiada ao Museu AfroBrasil e na última Virada Cultural montamos o som no Museu da Casa Brasileira. Essa exposição ocasionou também nos últimos tempos convites para os integrantes do coletivo falarem sobre nossas ocupações. E um dos "produtos" mais fortes que temos foi idealizado pelo Felinto e é a série de depoimentos #EscutaEssa, que registra de maneira muito delicada situações pelas quais negros e negras passam cotidianamente.
Por outro lado temos as parcerias com outros grupos e ações que são aprendizados cotidianos. Gostamos de pensar que estamos em um processo, por meio do qual nos posicionamos frente a práticas sociais ao mesmo tempo em que somos confrontados com outras questões com as quais precisamos lidar. Pois as ruas são assim, não existem soluções permanentes: estamos ocupando as ruas com um grupo de homens negros (héteros e cis), mas e as mulheres negras? Como é para elas ocupar e estar nas ruas? O que fazemos por isso? E ser gay negro e estar nas ruas? Como podemos colar junto e somar nessa luta? E podemos seguir com uma lista interminável de ações que são urgentes que nos afetam como grupo e como indivíduos…E teremos o festival como um exercício de plataforma por meio da qual poderemos trazer todas essas questões.
Sobre o festival que vocês organizam pode nos contar um pouco, qual a proposta? E podem contar um pouco do que vai rolar?
A primeira edição do festival 'Tomada Negra' acontecerá em 2016. Terá como objetivo resgatar e dar força a um movimento cultural específico que envolve arte, música e cultura produzidos por negros e negras nos termos da cultura urbana contemporânea. Ao mesmo tempo em que propiciará um ambiente para a livre fruição da identidade e protagonismos negros. Ou seja, todo o festival será produzido do começo ao fim por artistas, produtores e empreendedores negros e negras e contará com shows/discotecagens, exposições (artes plásticas/grafite/fotografia), moda, dança/performances, rodas de conversa/debate. O line-up será estouro! Podem contar com isso!