Calins, um dos 117 projetos selecionados no programa Rumos Itaú Cultural 2015-2016, é um documentário sobre questões de gênero e de raça
Publicado em 26/12/2016
Atualizado às 10:58 de 24/09/2020
por Victória Pimentel
Calins, um dos 117 projetos selecionados no programa Rumos Itaú Cultural 2015-2016, é um documentário sobre questões de gênero e de raça – sobre preconceito. É um filme de 54 minutos sobre a única comunidade cigana no Brasil e no mundo liderada por mulheres. Thaís Borges, proponente do projeto, explica que, desde quando o Brasil ainda era colônia de Portugal, os ciganos que aqui viviam eram considerados “sujos”, “trapaceiros” e “não confiáveis”. “Isso alimentou a construção de estereótipos poderosos. Tão poderosos que foram parar nos dicionários como definição da palavra ‘cigano’ e suas derivações”, diz.
Em 2013, Thaís participou da cobertura jornalística do Brasil Cigano: I Semana Nacional dos Povos Ciganos, em que cerca de 300 representantes de etnias romanis se reuniram em Brasília para dialogar com diferentes esferas governamentais na tentativa de construir políticas públicas voltadas para seus povos. Foi no evento, organizado pela Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (Seppir) -, que a diretora teve contato mais intenso com o universo cigano e suas diferentes demandas.
[caption id="attachment_95538" align="aligncenter" width="640"] Maria Paula, uma das cinco irmãs criadoras de Calins[/caption]
Ela explica que os ciganos, mais de meio milhão de brasileiros, estão cotidianamente expostos às dinâmicas de racismo e a um amplo conjunto de violações de direitos humanos. Desse sistema de segregação resulta um profundo desconhecimento da história e da cultura desses povos. “A ideia amplamente disseminada de que os ciganos são essencialmente nômades é um equívoco. Isso não é e nunca foi uma característica cultural. É, na verdade, fruto de um processo histórico de discriminação, da ‘política do faça-os andar’, que levava os ciganos a encontrar inospitalidade aonde quer que chegassem”, exemplifica Thaís. Convicta de que essa invisibilidade reforçava os processos de exclusão e violência em relação aos ciganos, a diretora deu início ao projeto.
Protagonistas
“Foi a Associação Internacional Maylê Sara Kalí (AMSK) que me confiou a história de Calins, a primeira comunidade cigana liderada por mulheres no mundo”, conta Thaís sobre a procura, para seu documentário, de um recorte temático no universo cigano. Para ela, a associação - que busca propagar a história, as tradições e os costumes dos romanis no Brasil em defesa dos direitos humanos – foi fundamental no desenvolvimento do projeto. “Recebi o tema como um voto de confiança e como um presente, porque a história reúne dois assuntos com que tenho grande afinidade: comunidades tradicionais e questões de gênero”, diz.
Localizado no interior de Santa Catarina – Thaís evita dar a localização exata por questões de segurança –, o acampamento de Calins tem como habitantes cinco irmãs, seus filhos e filhas, suas noras e seus netos. A comunidade surgiu quando quatro das cinco irmãs ficaram viúvas em um período de pouco mais de um ano, enquanto a quinta irmã se separou. Em vez de voltarem para a casa dos pais ou da família dos maridos, como manda a tradição em sua cultura, elas decidiram permanecer unidas. “Esse movimento em si contém uma ruptura e o início de um processo emancipatório”, explica Thaís. No entanto, ela destaca que o processo é ainda “bastante gradual e pouco consciente, e necessita antes de tudo da conquista básica de cidadania”.
No acampamento, as “Calins” vivem em situação de extrema vulnerabilidade: compram água na vizinhança e dormem debaixo de lonas. Seu sustento vem da venda de panos de pratos e da confecção de vestidos ciganos quando há encomendas. Thaís conta que elas costuram sem usar tesoura ou fita métrica – rasgam os tecidos e tiram as medidas com as mãos. “Na viagem mais recente ao acampamento, a situação que encontramos lá era crítica: depois de um período de chuvas, uma das cinco irmãs havia contraído leptospirose e tinha sido internada com grave risco de morte”, relata. “A luta dessas mulheres ainda se faz em quesitos básicos e urgentes, como garantir a coleta de lixo no acampamento, o fornecimento de água e energia, vagas para os filhos na escola, atendimento médico, a comida de cada dia.”
Preconceitos
Da etnia romani, os ciganos podem pertencer a subgrupos étnicos, com diferentes dialetos, tradições e costumes próprios. “Podem ser nômades, seminômades ou sedentários, viver em casas, acampamentos temporários ou fixos, ranchos e vilas. Não há critérios que definam, a partir de um olhar externo, o que é ser cigano”, diz Thaís. Além disso, a diretora pondera que a cultura é algo que está sempre em movimento. Enquanto ocupações tradicionais ciganas – como atividades ligadas ao circo, ao teatro, ao adestramento de cavalos e ao trabalho artesanal com ferro – são cada vez mais raras, práticas como o comércio informal de utensílios de cozinha, cama, mesa e banho, além de atividades ligadas à música e à dança, são muito mais predominantes.
Outras transformações culturais encontram barreiras ainda mais difíceis de transpor. É o caso do papel da mulher em uma organização familiar tradicionalmente patriarcal – nas comunidades romanis, a mulher depende do pai ou do marido, e suas atividades se restringem ao âmbito da casa. Nessa relação de assimetria em relação aos homens, as mulheres têm seu corpo controlado e muitas vezes sujeito à violência doméstica. Ao se afastar desse modelo social, de acordo com Thaís, “as Calins foram desconsideradas como comunidade tradicional por constituírem uma comunidade feminina, o que seria uma ruptura na tradição”. As mulheres da comunidade, portanto, além de enfrentarem preconceito por pertencer à cultura cigana, sofrem por ser mulheres na liderança de sua casa e de seu corpo.
No documentário, que tem previsão de finalização para agosto de 2017, Thaís narrará o percurso dessas cinco mulheres, criando pontes e aproximando-as do espectador. “Lindacir, Luci, Derli, Vilma e Maria Paula são as protagonistas da história. Elas só queriam ficar juntas, unidas pelos laços de sangue e por suas trajetórias pessoais, e por isso podem se tornar símbolo da luta feminina e cigana”, diz a diretora, segundo a qual o filme é uma forma de empoderá-las, “para que elas mesmas se vejam como sujeitos com direitos e para que o país as reconheça, apesar e por causa de sua diversidade”.
Ainda que pretenda minimizar o distanciamento entre diferentes experiências de mundo, Calins tenta estabelecer um olhar que vá além do superficial, do trivial. “Essa distância só se atravessa quando há disposição para se esvaziar e vestir a pele do outro. Nesse caminho, tão importante quanto desconstruir estereótipos é evitar o olhar de fascínio, o romantismo que afasta ao converter em exótico aquilo que é apenas estratégia de sobrevivência”, explica Thaís. “O documentário tem o objetivo de dar visibilidade política às demandas da comunidade e de servir de documento que ateste a sua existência.”