Em 2015, em razão dos 70 anos de falecimento de Mário de Andrade, o Observatório Itaú Cultural levou para o Enecult – Encontro de Estudos...
Publicado em 18/10/2016
Atualizado às 14:58 de 13/08/2017
Em 2015, em razão dos 70 anos de falecimento de Mário de Andrade, o Observatório Itaú Cultural levou para o Enecult – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura o minicurso Sentidos da Cultura em Mário de Andrade, ministrado pela antropóloga Luísa Valentini. Entre os assuntos abordados, Luísa debateu o papel de Mário de Andrade como gestor cultural e seu pioneirismo na política cultural. Em entrevista, ela aponta questões discutidas no curso.
O Enecult acontece na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e é organizado pelo Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Cult), pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos (Ihac) e pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, da UFBA. Conta ainda com o apoio do Observatório Itaú Cultural. Neste ano, será realizado de 15 a 18 de novembro.
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Como foi a experiência no Enecult – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura e qual era a proposta do minicurso Sentidos da Cultura em Mário de Andrade?
Por ocasião dos 70 anos de falecimento de Mário de Andrade, procurei recuperar uma questão importante na obra e na ação política dele – as tensões em torno da definição do que é cultura. Há uma série de perguntas que se colocavam para ele no projeto modernista e também na sua atuação no Estado: o que é arte e o que não é, os paradigmas de coleção e as formas diferentes de funcionar das expressões populares – são problemas que ele enfrentou e que têm ressonância e efeitos ainda hoje.
Observar o modo como ele equacionou isso foi produtivo para pensar o presente com os participantes do minicurso. Para isso, eu me concentrei na noção de documento que ele usou, como muitos outros na sua época, desde seus primeiros estudos no campo do folclore. Então examinamos juntos os impasses que se colocaram diante dele a partir disso, na medida em que pensar o popular como o arquivo dos documentos de origem da nação – da entidade nacional, de uma personalidade coletivizada – criou um efeito perigoso de colocar a Mário (e a todos nós) na posição de se responsabilizar sobre o que seria essa entidade, de ser um ajuizador da expressão nacional. Assim, ele passou a vida buscando critérios que distinguissem o autêntico, o fidedigno, o legítimo entre as expressões estéticas que ele via nesse Brasil da Primeira República até o Estado Novo. Como esse tipo de atribuição é de natureza arbitrária, as dificuldades que ele atravessou e a autoironia que ele expressou nesse projeto são muito boas para nos pensarmos ainda hoje.
Que tensões se apresentam entre as definições antropológicas e artísticas de cultura? Como isso se reflete na atuação de Mário de Andrade?
De maneira geral, os antropólogos tomam muito cuidado ao mobilizar categorias de um pensamento ocidental e acadêmico para falar de outras experiências e teorias do mundo que não são as desse circuito, e a arte é um conceito modelado a partir de uma experiência europeia. É preciso, portanto, observar esse viés ao nos aproximarmos de outras formas de conceber o que de início podemos tratar como objetos ou práticas da ordem da arte. Mário de Andrade se deparou com essa questão ao se dedicar ao exame da chamada arte popular – e com uma impressionante qualidade de observação.
Ele também era um leitor muito sistemático e chamou em seu auxílio, entre outras tradições de pensamento, a da antropologia, procurando critérios críticos que norteassem tanto os modos de fazer uma arte nacional quanto a ação do Estado nesse âmbito. É para isso que ele aciona ideias como as de folclore, legitimidade, popular e erudito, e de função social da arte, por exemplo. Uma ideia forte que ele desenvolveu na sua atuação como animador do circuito artístico e como homem público foi a de que houvesse acervos criteriosamente construídos de expressões populares a fim de oferecer aos artistas material de base para desenvolver seus trabalhos, e também que o Estado ajudasse a promover a circulação e o desenvolvimento das formas locais de expressão – fosse de modo a resistir à constante entrada de modas estrangeiras, fosse para consolidar a memória histórica de práticas que se perderiam com o tempo, ou ainda para consolidar o sentido e o sentimento de uma identidade brasileira, cuja construção – ele sabia – era muito complexa, tanto pela extensão territorial e pela diversidade cultural do país quanto pela violência e pela desigualdade que o fundam.
Que caminhos e questões são produtivos ainda hoje para pensarmos a cultura como campo de intervenção estatal?
A lógica do Estado exige que se delimite e se defina seu campo de ação. Assim, uma intervenção estatal na cultura demanda sempre que seja dito o que é cultura e o que não é – ou, numa definição mais larga, quais são os pontos prioritários para uma ação estatal na promoção de efeitos desejados sobre a cultura. Este é o cerne dos conflitos que estão sempre colocados no campo da política cultural e que têm uma duração histórica notável: o que receberá o destaque e as verbas do Estado? O antigo ou o novo? Os grandes equipamentos ou os pequenos? Quais campos de expressão? Quanto dinheiro vai para os artistas e quanto vai para a estrutura que proporciona a circulação de seus trabalhos?
O Brasil atravessou, no início dos anos 2000, um experimento radical de ampliação dos debates sobre os critérios e o vocabulário usados para definir esses focos. Por isso, embora Mário de Andrade tenha virado uma espécie de ícone da política cultural, e em particular da de patrimônio, e seja menos lido que louvado, penso que vale a pena sempre voltar para os dilemas que ele enfrentou no seu esforço – que hoje nos parece um tanto quixotesco – de desenvolver um vocabulário e uma fundamentação sólidos ou, ao menos, críticas para a lógica de produção da arte e da memória.