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Em produção, documentário aborda a população trans e travesti ao longo da Rodovia Transamazônica

Beatriz Morbach e Débora McDowell, que integram a equipe do filme, comentam a primeira viagem que fizeram para o projeto, de Marabá (PA) a Lábrea (AM)

Publicado em 27/11/2018

Atualizado às 10:39 de 05/06/2019

Por Beatriz Morbach e Débora McDowell

Em processo de criação com o apoio do programa Rumos Itaú Cultural, Transamazonia é um documentário que retrata a realidade de pessoas trans e travestis em áreas de influência da rodovia BR-230, a Transamazônica.

A ideia de pesquisar o transfeminismo na região surgiu de um projeto de série documental, criado em 2015, sobre preconceito de gênero e racial. Nessa ocasião conhecemos a Renata Taylor, ativista trans de Belém (PA), fundadora do Grupo de Resistência de Trans e Travestis da Amazônia (Gretta). Ela trouxe uma visão mais aprofundada sobre a questão T na nossa região e hoje integra, conosco, a equipe de diretoras do Transamazonia.

De lá para cá, produzimos uma videocampanha para a Caminhada em Defesa de Todas as Famílias e pelo Direito à Diversidade (#minhafamiliaexiste), realizada em Belém, e registramos a nona parada LGBT da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, onde ainda ministramos uma oficina de audiovisual para jovens indígenas da etnia Tikuna – foi quando recebemos a notícia da seleção do projeto pelo Rumos.

Esses e outros tantos trabalhos que realizamos nos diversos interiores da Amazônia ao longo de nossa vida profissional fizeram com que estabelecêssemos uma relação com o símbolo de desenvolvimentismo que representa a Transamazônica – obra com a qual conviveu Beatriz, uma das diretoras do filme, nascida em um trecho da rodovia.

Na primeira viagem que fizemos para o projeto, percorremos a BR-230 durante um mês e meio, de Marabá (PA) a Lábrea (AM). Isso mudou radicalmente nossa percepção do espaço em questão – daí a necessidade de elaborar em palavras um pouco dessa experiência.

Marabá (PA)

A cidade de nossa partida talvez seja o local onde os conflitos entre Estado e sociedade são vividos de modo mais intenso. O trecho da Transamazônica que passa por Marabá – o maior município do sudeste do Pará – dá certa impressão de modernidade à paisagem, que conta – por enquanto – com poucas edificações verticais. A cidade tem três núcleos: a Velha Marabá, onde se iniciou a ocupação do território pelos colonizadores; a Nova Marabá, setor planejado em 1971 pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam); e a Cidade Nova, área ocupada de modo espontâneo por trabalhadores de grandes projetos da mineração e do agronegócio.

Na parede de um dos blocos da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) há uma intervenção: “Onde estão os corpos dos desaparecidos do Araguaia?”. Em outra parede, o símbolo do transfeminismo se destaca em cor-de-rosa. É lá que Melissa Gabriela, uma das personagens do filme, estuda direito. Nós a conhecemos logo que chegamos, durante a parada LGBT, enquanto divulgávamos as oficinas audiovisuais que promoveríamos paralelamente às gravações. Os encontros da oficina e as filmagens também tiveram a participação de Raiara, companheira de Melissa, Akauê, filho das duas, e Samir, garoto trans e amigo do casal.

A estudante de direito Melissa Gabriela, habitante de Marabá e uma das personagens do documentário
A estudante de direito Melissa Gabriela, habitante de Marabá e uma das personagens do documentário

Altamira (PA)

Entre Marabá e Altamira surgem os primeiros trechos não asfaltados da rodovia. É na entrada de Altamira, por sinal, que fica o marco zero da BR-230. Ao lado do tronco cortado de uma árvore há uma placa datada de outubro de 1970: “[...] arrancada histórica para conquista e colonização deste gigante mundo verde”. Na manhã de 7 de setembro, a orla da cidade estava tomada de gente para o desfile de Independência. A imagem do palanque da prefeitura ocupado por quepes e paletós verde-oliva remete àqueles anos que não vivemos e que nos disseram se tratar do passado.

Às margens nada plácidas do Xingu, a independência veio para quem? É de lá que brada a barragem da Usina de Belo Monte, paredão fatal que se encontra geograficamente com a Transamazônica. Nossa última noite na cidade se deu na casa de Mauad, que promoveu as primeiras festas LGBT de Altamira. Foi nessas horas finais por lá que vivenciamos o tipo de situação que fez a cidade ser considerada a mais violenta do Brasil em 2017: acordamos com a notícia de que o primo de Mauad acabara de ser assassinado logo ali, na rua em que estávamos. Na mesma noite, um dos integrantes da nossa equipe ardeu em febre – um prenúncio do adoecimento que o acometeria no fim da viagem.

Itaituba (PA)

Saímos de Altamira depois do almoço – no Mercado Municipal – e rodamos 488 quilômetros, passando por Brasil Novo, Medicilândia, Aruará e Rurópolis. No deslocamento por Itaituba, chama atenção o contraste entre as casas “comuns” e as construções localizadas na Estrada do 53o Batalhão de Infantaria de Selva, onde mansões e palmeiras criam a sensação de uma Miami suburbana, situada na mesma estrada da reserva Praia do Índio, do povo indígena Munduruku; em direção à Praça da Bandeira, um outdoor comunica: “Garanta seus direitos. Seja um garimpeiro legal”.

Na Praia da Orla tivemos uma tarde inesperada e incrível na companhia da grande família de Dona Joia, uma senhora de muitos filhos, que estavam fazendo churrasco e nos convidaram para comer e conversar. No outro lado do rio vimos estruturas prateadas dos silos da Bunge, empresa que faz processamento de soja naquela área. Essa problemática estava estampada em uma arpillera – bordado em técnica chilena que denuncia questões políticas – produzida por mulheres do Movimento dos Atingidos por Barragens e apresentada a nós por Gelzeane, integrante da organização.

O governo federal prevê a construção de sete usinas hidrelétricas na Bacia do Tapajós. Elas inundariam terras de ribeirinhos e indígenas – um processo de autodemarcação dos Munduruku entrou em curso para se opor ao projeto. Lembramos de Belo Monte, em Altamira, e vimos a história se repetindo a poucos quilômetros de distância.

Jacareacanga (PA)

A caminho de Jacareacanga, pegamos a primeira chuva na estrada – que, de tanta poeira, se transforma em lama. Trezentos quilômetros percorridos à noite, com a possibilidade de atolamento a qualquer instante.

Enxergamos na pista escura a entrada do município, sinalizada por um trevo com estátuas representando o Cristo Redentor, uma Bíblia aberta e alguns jacarés. Jacareacanga tem uma das maiores populações indígenas do Pará, predominantemente da etnia Munduruku. Na pequena avenida principal, as mulheres e as crianças indígenas faziam fila em frente à agência bancária e ao posto dos Correios, onde diariamente os moradores da cidade buscam encomendas e cumprimentam os agentes postais pelo nome.

A chegada a cada hotel era acompanhada da expectativa de que o Wi-Fi funcionasse bem; mergulhávamos na tela do celular para tentar visualizar e compartilhar quantas imagens fossem possíveis e para travar contato com os nossos. Em Jacareacanga o 3G não ajuda. No computador da lan house vizinha ao hotel, o histórico de navegação mostrava o clipe de “Look What You Made Me Do”, que havia sido lançado recentemente pela cantora e compositora norte-americana Taylor Swift.

Apuí (AM)

Jacareacanga fica no limite entre o Pará e o Amazonas. Antes de cruzar a fronteira, em meio ao nada, nosso carro foi parado por uma equipe da Polícia Militar, que revistou a cabine e as bolsas que estavam lá. Queríamos filmar uma placa que indicasse a transição de estados, mas não encontramos nada desse tipo.

São incontáveis quilômetros de latifúndios onde não se vê gente e onde não se sabe o que é feito. Novamente, pegamos parte do trajeto já no escuro. Em dado momento, um pedaço de chão que parecia ser reto se mostrou curvo. A fim de não cair para fora da pista, o carro girou 180 graus em alta velocidade – uma manobra que dura uma eternidade quando, na escuridão total, há a possibilidade de que o veículo despenque no barranco à direita ou à esquerda. Foi nesse trecho que, no percurso de retorno, nos deparamos com a placa “PERIGO 100 m”, adornada de uma porta de carro vermelha e baleada. Comemoramos a chegada vitoriosa com uma cerveja em um restaurante chamado Espeto & Cia, no qual a senha do Wi-Fi era agropecuaria1.

A pousada em que nos hospedamos era administrada por uma chilena e sua família, cujo perfil não esperávamos encontrar por ali. A dona do Hotel Guarani nos recebeu de chimarrão na mão e nos falou em portunhol sobre as cachoeiras da cidade.

Humaitá (AM)

Algumas leituras sobre Humaitá aumentaram nossas expectativas de que aquela seria a maior cidade que visitaríamos no Amazonas – expectativas, é claro, de que lá contaríamos com uma boa internet. No caminho, usamos a balsa para atravessar o Rio Aripuanã e mais adiante vimos uma caminhonete do Poder Executivo Federal abandonada à beira da estrada, tomada pela poeira e com um galão vazio no banco do motorista.

No pouco tempo que passamos em Humaitá, percebemos que há ali uma ocupação que se assemelha à de Apuí. Ficamos hospedados em uma pousada malcheirosa e nos surpreendemos com o cemitério da cidade, localizado na orla do Rio Madeira – onde ficam as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, num espaço já perto de Porto Velho (RO), capital mais próxima de Humaitá.

Lábrea (AM)

A chegada a Lábrea nos desvelou um fato importante sobre a BR-230: a estrada termina, literalmente, nas margens do Rio Purus. Fomos recebidos pela professora Claudina Maximiliano, que nos abriu sua casa durante nove dias, compartilhando jantares e uma coleção incrível de livros. Era em sua sala que às vezes ligávamos três ventiladores ao mesmo tempo na tentativa de espantar o calor, que chegava a 40, 41 graus.

Claudina leciona no Instituto Federal do Amazonas e foi nossa ponte para que desenvolvêssemos a oficina de linguagem audiovisual nesse espaço – lugar que prezávamos também pela qualidade da internet. Na oficina, conhecemos o projeto indígena de vídeo Vozes do Purus, cujos membros mais jovens participaram da exibição e da análise de filmes – eles se interessaram, em especial, pelo longa-metragem colombiano O Abraço da Serpente, de Ciro Guerra. A atividade também nos aproximou de Marcelly, travesti de 35 anos que participa do Transamazonia e vive com a família numa das casas construídas por missionários estrangeiros no Bairro da Fonte.

Não foi fácil dar adeus a Lábrea – o isolamento da cidade aumentava a sensação de distanciamento enquanto voltávamos pela Transamazônica. A lembrança das últimas despedidas aperta o peito – despedidas das pessoas, dos rios, das paisagens absurdas, uma após a outra. Do rastro da fumaça e do fogo que queima há décadas a floresta que ninguém vê.

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