Qual é a relação entre o passado, a memória e a escrita da história? Neste texto, a professora Maria Ester Sartori lida com essa inquietação
Publicado em 10/04/2018
Atualizado às 18:35 de 04/10/2022
Por Maria Ester de S. R. Sartori
Le Goff (1994), em História e Memória, nos coloca um grande desafio quando nos faz refletir sobre qual a relação entre o passado e a memória para a escrita da história. O que ele pretende com essa provocação é demonstrar que em relação à memória o que sobrevive do passado chega até nós por meio das escolhas feitas “[...] pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, e por aqueles que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa [...]”, ou seja, os historiadores.
Isso quer dizer que, como a memória se prende a um espaço-tempo, a um passado que não existe mais, suas narrativas se constroem a partir da percepção que se tem dessa memória no presente e sobrevive porque são intensos os trabalhos de construção e reconstrução das lembranças e das recordações passadas. Quais as implicações disso? Passam a surgir muitos discursos justificando a necessidade de preservação da memória para garantir a existência da história e, assim, generaliza-se o uso da palavra memória esvaziando seu sentido teórico. Esse descuido pode fazer com que a memória acabe se ajustando ao senso comum, atravessada pelo caminho da retrospectiva descuidada, reprodutiva ou seletiva.
A memória presume uma temporalidade que tem como síntese a história vivida. A história vivida para alguns fica no arquivo, no registro oficial e no fato em si, para outros na lembrança, registrada em papel, fotografias, sentimentos, cartas, diários pessoais, registros de viagem, enfim, de muitas formas que as mantêm conservadas aguardando para ser relembradas.
Assim, embora a memória seja um instrumento de identidade e de conservação sociocultural, ela precisa ser compreendida em seus amplos aspectos e contextos. Nesse sentido, Ulpiano (1992) ao propor que apesar de serem valorosos, importantes e salutares os movimentos de preservação da memória e do patrimônio cultural (material ou imaterial), na medida em que funcionam como uma espécie de difusor para as reivindicações em vários campos culturais, é preciso atentar ao fato de que “[...] para conhecer o campo da memória, é necessário depurá-la de uma série de traços que lhes são vulgarmente atribuídos, para abrir caminho ao crivo da História”.
Isso não significa afirmar que a história e a memória não possam se relacionar ou que não possuam aproximações, mas que são conduzidas por exigências e existências diferentes. Enquanto a história se fundamenta sobre um saber universal aceitável, para a memória a presença do passado no presente é fundamental para a legitimação de certos saberes ou hierarquizações e para articular as narrativas do passado vivido à percepção do presente pretendido, como afirma Chartier (2007).
Tomando como exemplo os livros de memórias e suas sutilezas para estabelecer aproximação entre história e memória, notamos quanto neles se organizam os discursos quando o memorialista seleciona o que se deseja, ou não, ser conhecido. Nesse tipo de literatura, o passado parece viver o presente materializado em folhas de papel, que estão ali para ser investigadas.
Livros de memórias são exemplos interessantes e envolventes que nos instigam a pensar quanto as lembranças individuais se entremeiam às coletivas na medida em que tratam de acontecimentos em que o escritor está envolvido, mas nunca sozinho.
São registros constituídos como gêneros discursivos que, apesar de sua diversidade, revelam aspectos do cotidiano de quem os escreve e “vistos de perto” podem ampliar a percepção de muitos outros cotidianos, a partir do momento que promovem a proximidade entre a história, a memória, o discurso e os modos de compreensão do real. Ao mesmo tempo, seus conteúdos são reveladores porque mostram quanto a memória individual de quem os escreve sofre a interferência de fatores sociais do grupo ao qual pertence. Sendo assim, os livros de memórias deixam registradas as experiências vividas no grupo ou pelo grupo, mesmo que os acontecimentos e as pessoas não pertençam ao mesmo tempo/espaço.
O narrador que elege o livro de memória como recurso literário, na ânsia de garantir sua lucidez dialógica, ao falar de si, retorna a si constantemente, revelando quanto ele compactua, identitariamente, com o grupo social ao qual pertence. Dessa forma, a memória coletiva, na medida em que está inserida na identidade dos grupos sociais, no que se refere à reconstrução do passado, age de acordo com os interesses particulares do conjunto social consolidando a ideia de pertencimento, integração e continuidade desses grupos.
A busca de quem se narra é se conhecer e ser reconhecido pela escrita, como em um jogo de espelhos, trançando-se a existência do narrador e de seu personagem no mesmo novelo da lembrança, como um fenômeno individual e íntimo, mas que não tem seus nós atados apenas no que lhe é próprio ou pessoal, e sim nas tramas de fenômenos construídos coletivamente e submetidos a mudanças e flutuações.
Retirar os escritos memorialísticos “da gaveta” para que sejam valorizados como fontes de pesquisa mostra outras possibilidades de compreensão das ações humanas, pelo quanto eles conseguem abrigar temas que muitas vezes nenhum outro documento traz. São eles narrativas que permitem ocultar ou revelar a intimidade dos pensamentos ou das ações de quem os escreve, porque oferecem a oportunidade de conhecermos pessoas em situações efetivas em setores diversificados da vida pública ou privada. Eles são maneiras de mostrar os acontecimentos, os comportamentos e as práticas sociais que não se pretendem esquecidas e, ao mesmo tempo, a possibilidade de estabelecer uma relação privilegiada com o passado, fazendo reviver o vivido e oferecendo a possibilidade de restaurar um esquecimento.
Escritos memorialísticos são maneiras de interpretar as apreensões do tempo vivido a partir do cotidiano de quem os escreve. Registram situações pessoais e individuais de ver o mundo, traduzindo-o pela escrita. De forma intimista, sendo bastante significativos para perceber e representar aspectos da vida social, emergentes das trajetórias de vida de pessoas cuja memória parece perpetuada na palavra escrita. Portanto, uma boa forma de aproximação entre a memória, o que sobrevive do passado e a escolha do historiador para a compreensão da história.
Referências Bibliográficas
CHARTIER, R. A História ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
LE GOFF, J. História e memória. Trad. Bernardo Leitão (et al). 3ª ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1994, p. 535.
ULPIANO, T. B. M. A história cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo: USP, 1992, p. 34; 9-24.
Maria Ester de Siqueira Rosin Sartori é doutoranda em história cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em educação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), graduada em história pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), graduada em pedagogia pelo Centro Universitário Claretiano e pós-graduada em administração pela Universidade São Francisco (USF). Atuou como professora na PUC Campinas – no Plano Nacional de Formação de Professores (Parfor), na graduação em história e na pós-graduação em história e patrimônio. Exerceu coordenação e docência no curso de pedagogia da Faculdade Max Planck, em Indaiatuba. Tem experiência na área de educação como professora orientadora educacional e coordenadora de curso superior e na produção de materiais científico e didático. É membro do Conselho Consultivo da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba.