Em seu segundo texto, Ramon Vitral discorre sobre obras do selo Escória Comix e da editora Pé-de-Cabra, além de trazer uma entrevista com a quadrinista Débora Santos
Publicado em 25/11/2019
Atualizado às 13:48 de 23/03/2020
O editor e quadrinista Lobo Ramirez não gosta do termo “quadrinhos underground”. Sim, as obras publicadas por ele no selo Escória Comix seguem as mesmas referências e investem em muitos dos temas presentes nas publicações mais conhecidas do movimento de quadrinhos underground norte-americano dos anos 1960, que tem Robert Crumb, Trina Robbins e Gilbert Shelton como seus principais nomes.
Tanto nos Estados Unidos de cinco décadas atrás quanto nos quadrinhos lançados por Ramirez em sua editora independente, trata-se de publicações definitivamente impróprias para crianças, com excesso de violência e erotismo, habitualmente em preto e branco e com traços repletos de hachuras e antagônicos ao visual habitual de HQs mainstream.
O problema de Ramirez com o termo “quadrinhos underground” está na possível limitação dele a um “rótulo estético”.
“O que realmente importa é a essência de ir contra qualquer pensamento ignorante, falsos moralismos e fanatismos”, disse-me o editor e quadrinista. “Uma editora que se propõe a ser um caminho fora disso tudo precisa buscar sempre estar de acordo com essa essência dentro do que faz, que é publicar quadrinhos.”
As obras de Crumb, Robbins, Shelton e companhia e o movimento encabeçado por eles foram uma reação ao macarthismo e aos ataques conservadores dos quais as HQs foram alvo nos anos 1950 nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, Ramirez e seus títulos na Escória Comix, ao lado das publicações da editora Pé-de-Cabra, capitaneada pelo também editor e quadrinista Carlos Panhoca, são respostas enfáticas dos quadrinhos brasileiros aos tempos atuais.
Ramirez deu início às atividades da Escória em 2016, com a intenção de agrupar autores com quadrinhos “toscos, radicais, mal-educados, grosseiros, vulgares, despretensiosos e, por último e não menos importante, com humor”. Já a Pé-de-Cabra ganhou vida em 2018, com uma revista homônima de autores nacionais. Panhoca explica o nome da editora: “É o mal pelo mal, o vandalismo, o desrespeito à propriedade privada, a solução suja e sem volta para abrir algo. A ideia de mundo contemporâneo na cabeça da classe média medíocre é a dualidade de ideias. Bem versus mal. O pé de cabra se posiciona instantaneamente do lado do mal, que é o lado em que quero estar posicionado”.
As linhas editoriais similares das duas empreitadas acabaram por criar outros laços entre ambos os selos. Responsável pela capa da segunda edição da revista Pé-de-Cabra e autora de HQs nas duas edições, a quadrinista Emilly Bonna publicou Esgoto Carcerário pela Escória. O gibi de 40 páginas narra a saga de um penico cansado de sua vida como receptáculo de urina e fezes em busca de seu sonho de virar um vaso de flores. Para alcançar seus objetivos, Nico Penico dá início à caça pela criminosa Alzira Morcegona, tendo em vista a recompensa para quem detê-la. Responsável pelo sequestro de três pessoas, Alzira mantém suas vítimas dentro de um esgoto junto com seu comparsa e amigo, o rato Mariano. Segundo a autora, a HQ é uma mescla da influência dos filmes do cineasta John Waters com a série infantil Castelo Rá-Tim-Bum.
Outro que publicou pelas duas editoras é o quadrinista Fábio Vermelho, autor de histórias que giram em torno de crimes, depravações e participações esporádicas de monstros saídos de filmes de terror B. Recém-lançada pela Escória, O Deplorável Caso do Dr. Milton mostra um cientista renomado, pai de família, que dá início à criação desenfreada de clones dele mesmo, com quem acaba se relacionando sexualmente.
Diego Gerlach publicou Nóia: uma História de Vingança pela Escória, sobre um fã de quadrinhos que acaba se tornando um assassino serial após ser vítima de bullying em uma convenção de HQs. Há algumas semanas a Pé-de-Cabra lançou Pinacoderal: Rudimentos da Linguagem, do mesmo autor, um dos principais títulos de 2019 dos quadrinhos brasileiros, reunindo em um único volume de 252 páginas algumas obras inéditas de Gerlach e outras previamente publicadas de forma independente.
Mas talvez o grande nome descoberto pela dupla Ramirez e Panhoca seja Victor Bello. Presente nas duas revistas Pé-de-Cabra, ele lançou duas obras de fôlego pela Escória: em 2017, publicou Úlcera Vórtex; em 2019, O Alpinista. A primeira é uma aventura protagonizada pelo entregador de gás Adriano Gás dentro de um buraco negro interdimensional instalado no estômago de um cientista e que dá acesso à civilização de Gorgonotúbia. O segundo, outro destaque de 2019, é um épico de 220 páginas narrando os dramas do maior alpinista do mundo, superado apenas em sua escalada derradeira, uma missão trágica que põe fim à sua carreira, mas o coloca no centro de uma conspiração envolvendo políticos e alienígenas que pode levar ao fim da vida na Terra.
Não se trata de nonsense gratuito. São histórias originais e disparates necessários em tempos conservadores. “Este ano foi péssimo para o país. A gente toma uma atrás da outra, então eu me sinto até meio culpado de a Pé-de-Cabra fechar o ano bem”, diz Panhoca, com ênfase no “bem”. “De duas publicações no primeiro ano, fechamos o segundo com seis, todas vendendo legal e com um retorno bom do público e da crítica, sem tirar o pé e fazendo o que a gente mais gosta: HQ de maloqueiro.”
Ramirez também faz um saldo positivo em relação ao 2019 da Escória: “Comecei o ano com altas expectativas, anotei todas as minhas pretensões de lançamentos, e eram mais ou menos uns 12 ou 13 títulos. Até agora acho que consegui publicar seis, então o balanço é: pense alto e faça metade, que já é muito. Estou feliz principalmente com a qualidade do material; para mim foi o melhor ano da Escória”.
Três perguntas para… Débora Santos, quadrinista, ilustradora e membro do coletivo Netuno Press
A segunda edição da seção que encerra a Sarjeta é protagonizada pela quadrinista e ilustradora Débora Santos, membro do coletivo Netuno Press. Ela é autora do álbum Lua Cheia e coautora de obras como Sapacoco e Pombos!, em parceria com Márcio Moreira.
O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?
Ver a quantidade de mulheres que fazem quadrinhos crescer nos últimos anos. Há 15 anos, pelo menos, não lembro de haver tanta mulher no Brasil fazendo isso (e aqui no Ceará, então, menos ainda). Eu na lista também, comecei em 2014! Vejo isso como algo muito importante, principalmente depois do Lady's Comics e aqui no Ceará do [Des]enquadradas.
Como leitora e autora, o que mais lhe interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?
Isso depende do momento que vivo. Hoje gosto de narrativas que possam me ensinar algo sobre mim. Recebi umas lapadinhas do quadrinho Você É Minha Mãe?, da Alison Bechdel, por exemplo. Também amo demais uma comédia e, quando a história não se leva a sério, melhor ainda, tipo Lordes e Damas e Quando as Bruxas Viajam, do Terry Pratchett. Mesmo não sendo quadrinho, mas a maneira como ele tira a seriedade de tudo e critica ao mesmo tempo é um presente para mim como leitora. E as duas últimas histórias que venho escrevendo têm essa influência; quero que sejam quadrinhos divertidos de ler.
Qual é a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?
Acho que é de ler Turma da Mônica na casa de uma amiga. Ela tinha uma pilha de gibis ao lado da privada, e eu achava isso a coisa mais chique do universo. Gostava de me trancar no banheiro e ficar folheando, vendo cada detalhe dos desenhos e tentando entender como eles conseguiam fazer aquilo. Em casa eu não tive uma educação em que era incentivada a ler, então depois disso só voltei a ter contato com quadrinhos na adolescência.