Estrela Leminski é escritora, poeta, compositora e musicista. Filha de Paulo Leminski, vasculhou o trabalho do pai e encontrou...
Publicado em 28/01/2015
Atualizado às 21:04 de 02/08/2018
Por Amanda Rigamonti
Estrela Leminski é escritora, poeta, compositora e musicista. Filha de Paulo Leminski, vasculhou o trabalho do pai e encontrou composições inéditas e parcerias feitas com outros músicos, que resultaram no CD duplo Leminskanções. Aqui ela fala sobre o trabalho e o processo de criação, o relacionamento com o pai e o interesse pela música.
Por que você decidiu gravar o Leminskanções? De onde veio a ideia? Você que escolheu as composições que entraram?
O Leminskanções começou quando aconteceu a Ocupação Paulo Leminski no Itaú Cultural e minha mãe, que estava assessorando a curadoria, observou que ainda tinha muita coisa inédita da parte musical e que muitas pessoas ali não faziam ideia de que o Paulo era compositor. Nos anos 1980, muitas pessoas conheciam a poesia dele justamente através do Paulo Leminski compositor, que estava na mídia em todas as faixas etárias, desde o Pirlimpimpim, que era um especial infantil, até A Cor do Som, com gravações do Caetano Veloso.
Na Ocupação foi a primeira vez que eu montei o show com esse repertório, e percebi que estava trabalhando principalmente as músicas que as pessoas mais conheciam, o que foi muito legal, pois muitas deram esse retorno dizendo que tinham notado que conheciam muitas músicas dele e que aquilo deveria ser um CD. Por outro lado, eu vi que essas músicas já haviam sido gravadas e que ainda tinha muita coisa inédita, muito legal, que estava de fora. Aí foi um deus nos acuda porque eu queria fazer caber tudo em um CD, por isso acabou virando um CD duplo. E eu quis separar bem, um só de letra e música compostas por ele e outro de parcerias.
A partir disso, já vi uma grande diferença, porque as pessoas costumavam chamá-lo de letrista quando citavam alguma música, e agora vejo que a própria imprensa já costuma comentar “Todo mundo sabe que o Paulo era músico” – o que eu acho fantástico.
E como você pensou os arranjos?
Uma coisa que eu também achava fundamental para esse disco era que trouxesse o repertório sonoro dele [Paulo Leminski]. Como os LPs dos meus pais estão comigo, esse repertório das coisas que ele ouvia ficou muito latente e eu quis trazê-lo para dentro dos arranjos. É bem legal que muitos ouçam e falem que é estranho porque remete muito aos anos 1980, embora seja também muito atual − e é isso mesmo, não é só na poesia que o Paulo continua sendo atual, na música também. Então, eu tive o intuito de tentar trabalhar com esses opostos que ele era, com essa erudição absurda e, ao mesmo tempo, com o coloquialismo e a espontaneidade desse cara que estava colocando a jaqueta de couro, agitando no show do 365 e ouvindo The Clash na cara do Arnaldo. Esses opostos tinham que, de alguma forma, estar presentes no disco, por isso as participações especiais, os arranjos. E ainda tem muito de lirismo, tem canções lindas e românticas porque ele também tinha esse lado.
Alguma das canções que você escolheu é sua favorita ou tem alguma história especial?
Na verdade, acho que cada música do repertório está ali por um motivo muito forte e especial. Uma delas é “Verdura”, uma música que acabou projetando muito ele e que, por outro lado, é a mais controversa. Como quem gravou foi o Caetano Veloso, acho que ela dá chance demais para equívocos... em muitos lugares, as pessoas têm mania de dizer que é uma parceria – e não é –, então essa tinha que estar [no álbum]. Além disso, tenho um vínculo especial com ela porque o disco do Caetano chegou na semana em que eu nasci. Na verdade, o disco chegou e logo em seguida começaram as contrações da minha mãe para eu nascer, então falo que, de certa forma, sou irmã gêmea de “Verdura”.
Mas cada uma delas tem uma história bonita, tem uma que é até engraçada. Ela foi parar no disco depois de um trabalho quase de garimpo sonoro porque dentro desse processo de escolha eu peguei as fitas cassete e digitalizei todo o material para ouvir, e tinha uma aula muito interessante em que, quando ouvi pela terceira vez, percebi uma sobreposição de som... tinha uma música, era uma melodia maravilhosa e eu quase entendi algumas palavras. Daí, quando cantei para a minha mãe, eu descobri que era uma música que ele já não cantava quando eu nasci, era uma música mais antiga dele, depois encontrei a letra que ele digitou e entendi o porquê. É uma música bastante desaforada que ele fez para um amigo quando eles romperam, aí pensei que eu parecia um Indiana Jones musical, descobrindo os segredos e desvendando coisas que aconteceram. Então dá para imaginar que ele pegou, olhou, pensou “Bom, entre uma música desaforada que me lembra de coisas tristes e uma aula maravilhosa que eu estou preparando, fica a aula maravilhosa” e gravou por cima. Por sorte a tecnologia não era tão perfeita na época e ficou essa sobreposição... Então, uma das músicas que muita gente gosta bastante e que inclusive as emociona vem disso, de uma aventura pelos porões das fitas magnéticas.
Você era nova quando seu pai faleceu. Você tem lembranças dele?
Pois é, eu tenho muitas lembranças! E é engraçado porque quando ele faleceu eu tinha oito anos e, por mais que pensemos que com oitos anos se é novo, temos todas as memórias ali já. Além disso, eu ficava muito com ele em casa, sempre fui muito notívaga, gostei de dormir tarde e acordar tarde, e essa era a rotina dele também. Os meus pais intercalavam quem trabalhava fora de casa e quem fazia freelance e job em casa; e bem em um período determinante para mim, por volta dos cinco anos, a minha mãe foi para a agência de publicidade porque ela já era diretora de criação e ele estava escrevendo alguns livros em casa.
Esse momento foi muito bacana porque, além de termos convivido demais, comigo ele pôde ser o pai que participa, que tem que se virar com as situações cotidianas, e também pôde compartilhar comigo muito das criações dele, o que é bem legal porque, por mais que eu fosse criança, lembro nitidamente de trechos de obras que ele comentava comigo, dos jargões e das brincadeiras que ele fazia relacionados ao que estava elaborando ali... E é uma vivência que, ainda mais se tratando de um escritor, não é tão fácil ter porque existe também aquele outro momento em que ele está escrevendo e os filhos de preferência não devem atrapalhar. Lá em casa o som do alarme era o da máquina de escrever, o “tec tec tec” era um alarme do tipo “não atrapalhe”, porque eles estavam no meio de uma ideia. Então, podia ser só isso, mas não, ele sempre fazia com que a obra estivesse no meio da vida e a vida no meio da obra, ele nunca separou as coisas – o que por um lado é muito legal porque me deu uma vivência intensa, inclusive desse processo criativo dele, da forma como ele pensava as coisas.
Eu vi que você escreve desde os seis anos e que publicou alguns de seus poemas em Cupido: Cuspido e Escarrado. Como é se deparar com esses trabalhos da sua infância? Você se identifica com eles? E tinha muita influência dos seus pais?
Eu fiz dois livros de poesia, um é o Cupido: Cuspido e Escarrado, que são poemas de infância e adolescência, porque sempre fui apaixonada pela linguagem e escrevia. Fiquei muito tempo guardando isso e, com 21 anos, precisei datar, lançar em um livro que eu não divulgo muito para ninguém porque ele esgotou e a editora é pequena, não tem uma segunda tiragem. Depois fiz o Poesia Não, que já é um livro bem mais recente, que trabalha linguagens visuais. E achei bem interessante porque percebi que ele tem um superapelo entre os adolescentes também, e durante muito tempo eu até questionava isso, pensava “Poxa, quando eu vou chegar a essa poesia dita adulta?”.
Aí fui observando que, na verdade, os leitores que se apaixonam, por exemplo, pela obra do meu pai, são justamente esses adolescentes. Passa ano, passa década e é sempre uma faixa geracional que se apaixona, e já percebi que quem continua apaixonado por poesia são pessoas que não matam nem essa criança nem esse adolescente que existem dentro delas, então acho que fiz as pazes com os dois livros de uma tacada só. Acho que é fundamental também poder dialogar com um nicho, uma faixa, um grupo de pessoas que acima de tudo continua apaixonado pela linguagem, pelo lúdico, pelo questionamento, continua indignado, enfim, não deixa a caretice empeirar, digamos assim. Então só por esse fato eu já me identifico com meus pais, independentemente da linguagem, porque acho também que se identificar com eles na poesia não é privilégio meu, tem um bando de gente nesse barco comigo, eu sou só mais uma na multidão.
E como você se interessou pela música?
Quando as pessoas perguntam qual a influência dos meus pais na minha obra, querendo falar da parte poética, sempre comento isso, que sou influenciada pela poesia deles como qualquer leitor, eu sou leitora deles. Mas, na música, eu tive o privilégio de estar sempre ali no making of; desde muito pequena eu sempre queria estar nesses momentos festivos em casa, em que meus pais estavam fazendo as parcerias, com os músicos por ali, esse, sim, era um momento totalmente compartilhado, em que a família toda também estava inserida.
E eu lembro muito fortemente de o meu pai brincar de compor comigo em casa, então era uma coisa que sempre me interessava. Não tanto focado em instrumentos, mas, sim, nessa ideia da linguagem, das palavras e das ideias melódicas, e isso foi desde sempre, tanto que enquanto eu estava escrevendo esses meus poemas achava inclusive que nunca iria dar vazão a eles... se fosse, ia ser transformando-os em letra de música. E foi até por isso que eu acabei fazendo tudo, graduação, especialização e mestrado na área musical. Mas, quanto mais eu me aprofundava, o que me interessava era justamente a linha tênue entre a palavra e a música. Então, no fundo, eu vou cambaleando para lá e para cá, mas estou sempre nessa mesma direção, que é essa fronteira que me interessa demais. E, hoje em dia, eu nem dissocio mais, as duas vão paralelamente, às vezes uma acaba desfocando um pouquinho a outra, mas isso faz parte do processo também.
Você tem novos projetos em vista? Pretende musicar mais projetos do seu pai ou algo similar?
Eu tenho meu trabalho autoral ao lado do Téo Ruiz, meu marido, e provavelmente vamos fazer um próximo disco agora em 2015. Estamos com muitas músicas engatilhadas neste trabalho que vamos fazer com vídeos, é um projeto um pouco diferente.
E eu tenho também algumas bandas paralelas. Uma com o Bernardo Bravo, compositor de Curitiba, que somos nós dois e o Bernardo Bravo; outra que é um power trio feminino de punk rock, chamado Gurias de Família, com a Livia Lakomy e a Ana Larousse, outras duas compositoras de Curitiba que todo mundo tem como pessoas da cena fofa – na qual muitas vezes me enquadram também. Como nenhuma das três aceita esse enquadramento, esse rótulo, resolvemos montar uma banda para também extravasar um lado mais rock’n’roll, e nela vou voltar para onde comecei, que é na bateria. Tudo começou para mim na música, em bandas, com a bateria, e aos poucos eu fui para a frente do palco... então agora vou ficar brincando de ir para a frente do palco e voltar.
Você falou de seu marido, como é trabalhar em família?
É engraçado porque só o fato de termos uma casa em que as pessoas trabalham com arte faz com que isso acabe se misturando. As pessoas estão ali vivendo, trabalhando e compartilhando a sua criação e acho que eu acabei estendendo isso, porque no meu casamento não sei nem dizer o que começou antes, se foi ele mesmo ou a parceria musical. Os dois têm a mesma época, a mesma data, tudo começou muito junto... começamos a namorar quando estávamos ensaiando para um show para acompanhar outros dois músicos de Porto Velho.
É sempre desafiante. Acho que, por um lado, tem um desgaste a mais, porque você tem outras questões. Eu sempre falo que minhas piores DRs são justamente as artísticas, porque são discussões mais profundas e complexas. Mas, por outro lado, é sempre uma forma de nos renovarmos, estamos sempre viajando juntos, descobrindo coisas novas e compartilhando um com o outro, e isso vai oxigenando a relação. Até o fato de sermos duas pessoas superdiferentes, com gostos diferentes e, nesse trabalho que fazemos juntos, termos que descobrir onde nos encontramos faz com que sigamos reinventando esse ponto de encontro, e isso é a delícia dessa característica. E agora não estamos só eu e ele, mas a família inteira, porque estamos cuidando da obra do meu pai − eu, minha mãe e minha irmã −, então continua uma mesma dinâmica, mas como mãe e filhas que têm que trabalhar com curadoria e produção, com partes práticas e burocráticas. É um desafio, mas é sempre estimulante.
O que você espera do show no Auditório Ibirapuera que acontecerá no dia 31 de janeiro?
Esse show é um lançamento, mas para mim é o grande fechamento de um ciclo, porque tudo começou no teatro do Itaú Cultural com uma ideia. E foi a primeira vez que eu fui para a frente do palco e me assumi como cantora única de um show, digamos assim, e isso me ajudou muito a descobrir onde estava a intérprete dentro de mim, que era também ligada a essa ideia de palavra e voz e à forma com que meu pai fazia as coisas.
Então para mim isso é um grande fechamento, porque foi a partir daí que veio toda a ideia, a necessidade e a clareza do que fazer em relação a esse trabalho. Por isso, eu sinto como se fosse uma grande festa de celebração de algo que começou de certa forma aqui também, até porque o meu pai morou em São Paulo... é bem bacana porque tem muito desse repertório, das referências musicais e de tudo que faz muito sentido ser aqui. Além disso, vou poder compartilhar esse ambiente com essas. Então estou sentindo isso, que vai ser uma grande festa.