Depois de Assucena Assucena, em setembro, Raquel Virginia, também vocalista da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, faz sua estreia como colunista do site do Itaú Cultural
Publicado em 24/09/2018
Atualizado às 18:05 de 24/09/2018
Acordei e meus olhos saltaram como um susto. Sim, eu continuava viva. O barulho frenético da rua e a imagem do teto à minha frente comprovavam que morta eu não estava.
Sozinha, para acalmar o baque do novo dia, fui como uma atriz lentamente até o banheiro.
O discernimento entre o cheiro de uma mulher e o de um homem eu nunca soube muito bem. Naquele momento, meu cheiro era de homem. Passei a mão nas bolas e depois cheirei – a natureza depois do sono é sincera. Aquele era meu cheiro. Cheiro de macho. Aí lembrei de um desses panfletos que circulam nas redes sociais que dizia existirem mulheres de pênis. Voltei num instante a acreditar na minha feminilidade. Passei a mão no meu rosto. Uma cólera chamada barba interrompia de vez minha calma. Bati forte com a mão na pia.
A hora entre meu acordar e estar montada é um momento delicado. Tudo me confunde. É todo dia um abismo novo.
Eu me aprontei e saí de casa. Antes de sair, eu me olhei no espelho e me achei muito bonita. Repeti isso algumas vezes em voz alta, dei gargalhadas e alguns gritos enquanto tocava música animada e alta. Eu me abasteci de confiança e alegria e tomei a rua.
Era uma entrevista o que me levava à rua. Para algum desses jornais mais à esquerda, em que os jornalistas fazem perguntas, com outras palavras, iguais aos da direita. De cara ela perguntou: quando você descobriu que era trans?
No caminho até a entrevista sentei no banco da frente, como sempre faço, ao lado do motorista. Pedi música. O motorista, que se chamava Léo, ficou me mirando quando entrei. Falta metáfora exata para descrever, talvez só o pajubá dê conta de preencher nossas experiências. E esse vocabulário me é ausente. Mas a sensação era o choque. Choque da velha biologia com a novíssima biologia. Eu e ele. Fechados num mesmo carro, ele me servindo e eu a cliente dele. O homem cis e a mulher trans. Dois mundos aparentemente e profundamente distantes.
– Que legal que você é! A maioria dos clientes gosta de ouvir notícia ou música ambiente – ele disse isso me olhando com simpatia.
– Ah, sim. Melhor ser feliz, né!? – eu disse, correspondendo àquela simpatia.
– Por isso eu falo: as melhores pessoas de carregar são vocês. Sabem bem o que é a correria da vida. Onde é seu ponto?
De uma coisa ele estava certo: nós temos muita consciência das correrias da vida. Desci do carro meio atordoada por não saber se havia sido didática o suficiente para explicar os efeitos nefastos de sempre nos imaginarem nada além de putas.
Ele tentou entender. Fiquei irritada, detesto parecer pregadora da minha condição, mas preciso salvar vidas, incluindo a minha. Hoje ser travesti é ser missionária, e não existe outra maneira de salvação.
Diante da jornalista tentei explicar quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha. Reexplicar o óbvio para mim e a teoria do buraco negro a ela.
Tudo é tão simples. “Quando você descobriu que era trans?”
Ora essa, quando me dei por gente. Só que era um lugar distante e incomunicável. Não se proferiam nomes “diabólicos” como travesti em casa...
A entrevista foi se dando de maneira que, uma vez ou outra, eu oscilava da explicação minuciosa e paciente a respostas curtas e mal-humoradas.
Culpa mesmo ninguém tinha de há dois anos minha monocultura ser a sigla T. Era a necessidade dos tempos de agora, urgência de outrora, e com a correnteza fui me tornando uma das portadoras de ideias que o mundo cis precisa apreender.
Dei um abraço frio na jornalista. Achei que falei demais e de coisas muito íntimas. Isso não me fez bem e ela não me parecia sensível. Eu me arrependi. Da próxima vez, foda-se, vou falar menos, me expor menos.
Quando saí do prédio, era hora do almoço. Sinalizei despedida para o recepcionista que me cadastrou ao entrar no prédio. Quando olhou meu documento, foi rápido e perguntou com qual nome eu desejava ser chamada.
Entrei no carro. Dessa vez sentei no banco traseiro e tive um comportamento menos interativo. Fiquei olhando a rua com olhos de drama silencioso, olhos de fim de filme triste. Comecei a rir da minha cara, eu me senti maluca. Eu ri, e ri e ria. O fim do filme com a minha risada solitária ficava ainda mais triste, mas eu era feliz. Eu era atriz de novela, e não existe final triste na televisão. E, se a cena inventada no carro era a cena final da novela, teria de ser feliz.
Pedi ao motorista que parasse o carro para eu me sentar na frente e mexer no rádio. Ele encostou, fui para a frente. Olhei para ele, abri um sorriso e coloquei música animada e alta. Ele riu, eu ri. Os nossos olhares ficaram amigos e íntimos em segundos. Minha novela acabou com música alegre no trânsito de São Paulo.