Em entrevista, o fotógrafo Roger Cipó fala sobre a luta do povo negro por “narrativas de dignidade da imagem e do ser”
Publicado em 03/05/2018
Atualizado às 16:33 de 17/08/2022
Fotografia, religiosidade e memória da diáspora africana.
O fotógrafo paulista Roger Cipó, criador da plataforma Olhar de um Cipó, retrata as religiões de matriz africana com linguagem única, pelo ponto de vista de quem as vivencia – o artista é iniciado no Egungun, culto africano à ancestralidade, e no candomblé Ketu. Mantendo um ponto de vista crítico sobre como o racismo estrutura as relações sociais e, assim, influencia o modo como são produzidas imagens e representações e quem as produz, Cipó fala nesta entrevista sobre fotografia, comunicação, memória e corpos negros no Brasil.
Conheça também o ensaio "A Beleza da Identidade", produzido por Cipó para a publicação impressa da Ocupação Abdias Nascimento.
De onde vem o nome Roger Cipó?
O nome Roger me foi dado por minha mãe, Cleusa, uma mulher negra da periferia de Diadema que, vitimada pelo racismo estrutural, só conseguiu estudar até a terceira série do fundamental. Quando vemos uma criança negra ser forçada ao trabalho para que possa comer (e comer o que der), tendo seus direitos básicos negados como parte de um ciclo que historicamente marginaliza seu corpo e sua subjetividade, entendemos como o racismo estrutura e define as narrativas negras no Brasil. Falar de Cleusa, que me traz ao mundo após uma vida de sofrimentos sistêmicos, presentes em nossa família desde sempre, é marcar a minha trajetória como jovem negro, ascendente dessa história.
Já Cipó é o primeiro nome ancestral a mim atribuído no meu ingresso na capoeira. O meu grande passo consciente de encontro às manifestações afro-brasileiras. Digo consciente porque, embora educado em favela, onde a música negra é trilha das vidas, não entendia sua importância como ferramenta de preservação de memória e de resistência dos meus. A capoeira me faz renascer, expande-me a um mundo negro e me leva até o candomblé, e é no candomblé que me compreendo gente.
Fale um pouco sobre como começou o seu projeto de pesquisa fotográfica.
Na adolescência, inspirado pela fotógrafa Tatiana Cardeal e por ela impulsionado, passei a questionar que tipo de imagem se tinha construído em mim sobre algo que eu, naquele momento, estava conhecendo e me encantando. Como era, para mim, entender que o candomblé era o lugar que me foi negado, por uma estrutura que o marginalizava, da mesma forma que marginalizava a mim, minha família, minha mãe? Assim mergulhei no universo do candomblé e, como curioso do olhar, mergulhava também na fotografia como técnica e forma de observar melhor o mundo. Alguns anos à frente dessas experiências, a fotografia se tornou ofício e ferramenta de diálogo para recriar ou reescrever a imagem das religiões de matriz africana, com lentes isentas de filtros racistas, porque entendi que a aversão social a tais práticas é parte de uma aversão a tudo que é preto – corpos, filosofia e existência no Brasil. Do meu contato com o candomblé para cá já se vão 12 anos, dos quais 9 foram ocupados por registros das cerimônias, rituais e cotidiano sagrados dos terreiros. Assim nasce a Olhar de um Cipó.
Qual a importância da fotografia como processo de registro de memória para os povos da diáspora africana, principalmente no Brasil?
Em um país que trabalha incansavelmente para invisibilizar a presença africana em seu povo, cultura e arte, a fotografia se faz uma das ferramentas de diálogo mais importantes. Em um país que violenta a imagem africana de inúmeras formas, a fotografia produzida por pessoas negras que compreende a importância de retratar, registrar e valorizar as memórias a partir de quem as vive é uma contranarrativa poderosa, por trazer em suas imagens toda uma trajetória pensada e repensada para um diálogo imagético honesto, que represente o que de fato são os povos da diáspora no Brasil e no mundo. É desse lugar que gosto de pensar e olhar para a forma que a fotografia nos permite apresentar o que somos, queremos e significamos.
Não por acaso a produção fotográfica está, em sua grande maioria, nas mãos de pessoas brancas, no Brasil. Não por acaso, a maioria dos trabalhos que contam histórias dos corpos e manifestações negras no Brasil tem sido registrada por olhos brancos. E é aqui que mora uma das grandes ferramentas de manutenção do racismo, pois são olhares opressores (ou acostumados com a opressão), olhando para “objetos” (termo usado nas metodologias de pesquisa) para retratar a partir de como seus olhos leem o mundo, o que são os negros no Brasil. E como pensa sobre o negro alguém que se acostumou a pensar que negro é inferior, marginal e sem humanidade? Olhará sempre sem perceber humanidade no outro.
Contra essas narrativas, a gente enfrenta essas pseudoverdades e escrevemos com luz o que de fato somos.
Uma das preocupações dos movimentos negros hoje é o descaso com a memória da escravidão no Brasil. Temos acompanhado os problemas que o Instituto Pretos Novos (IPN) tem passado para manter suas atividades, e os desafios na preservação do Cais do Valongo, que foi tombado como Patrimônio Mundial Cultural em 2017. Qual a sua visão sobre a dificuldade de preservação dos lugares de memória da escravidão no Brasil?
A Unesco reconheceu a escravização de africanos e descendentes de africanos como um dos maiores crimes da humanidade e fala dos impactos desse crime na formação da sociedade brasileira. A sociedade brasileira a trata apenas como um período encerrado em 1888. Não há compromisso social com essa história e não se fala em reparação. Entendo que a maior dificuldade desse processo é o Brasil se responsabilizar pelo período escravocrata mais longo do mundo.
Os lugares de memória desse período, no Brasil, como é o caso do IPN, estão agonizando porque não é interessante para uma sociedade como a nossa entender tais processos e seus desdobramentos. E é proposital a invisibilidade, sempre é, e tanto é que, no Rio de Janeiro, o prefeito fala, desde 2017, da implementação do Museu da Escravidão e Liberdade (MEL), um projeto que romantiza um crime contra a humanidade negra, e, ao mesmo tempo, o mesmo prefeito corta verbas de manutenção do IPN, o sítio arqueológico que remonta a trajetória de milhões de negros e negras aqui escravizados.
Não por acaso nossas crianças aprendem que Isabel, a princesa, “libertou” o povo negro da escravidão, mas não se fala de revoltas, não se fala de lutas negras. Trabalha-se para preservar uma história, protagonizada pelos algozes. O nome disso? Racismo em suas mais variadas formas e frentes de atuação.
Atualmente você está com uma exposição itinerante chamada aFÉto, em que retrata imagens de adeptos do candomblé. Como surgiu a ideia da exposição e qual a importância de um trabalho como esse para a desmarginalização das religiões de matriz africana?
Quando me perguntam o que orixá faz, eu digo que orixá ama. Orixá AFÉTA. aFÉto, antes de tudo, trata das minhas experiências nos terreiros de candomblé. Uma experiência de FÉ que nasce a partir das relações afetivas construídas nesses espaços. O racismo é um crime que retira humanidade de corpos negros – dessa forma a igreja justificou a escravização, por exemplo. O candomblé enquanto organização social devolve humanidade a esse povo sequestrado, e foi daí que aFÉto nasceu.
Eu poderia seguir exemplos de olhares colonizadores em busca de desvendar os mistérios de uma religião negra, seus cultos, suas formas alucinantemente curiosas (como muitas narrativas produzem), mas o fato de ser parte desse universo, de o compreender como espaço de humanização – porque olho sem as lentes do racismo (o racismo faz que se olhe como exótico) – e de perceber a importância da fotografia para recontar tais histórias, olho como entendo: um espaço de acolhimento e de conexão entre a ancestralidade africana e seus ascendentes, no Brasil. aFÉto é um trabalho que fala daquilo que todos os grandes fotógrafos e fotógrafas que registraram o candomblé em cem anos não falaram: o candomblé é espaço de gente que se cuida, se respeita e se cura. É lugar de gente e não de corpos sob transes alucinados.
Sabemos que a imagem é uma poderosa forma de comunicação e de construção de realidades na sociedade da informação. Como você analisa a produção de imagens de manifestações da cultura africana e afrodescendentes no Brasil? É possível combater o racismo através dessas imagens?
Ao longo da história da produção de imagens de manifestações de cultura africana no Brasil, nós nos deparamos com imagens, como dito anteriormente, que colocam tais práticas em um lugar quase sempre de objeto de pesquisa. Um olhar que subjuga e predefine algo sob o pouco entendimento de quem detém o poder das lentes. Há um perigo na construção dessas histórias, pois corpos e manifestações negras são formas historicamente associadas ao feio, ao ruim, em relação às não negras, no Brasil.
Na construção dessas imagens, encontraremos, muitas vezes, olhares, colonizações, objetificações do outro. Essa construção em nada ajuda na valorização dessas práticas. No Brasil, ao contrário, ela as coloca à margem do belo e do sagrado, e as mantém em lugares de estranho, de profano e, em alguns momentos, de folclórico, apenas. Não que o folclórico seja algo ruim, ruim é a redução das manifestações que são artísticas, sociais, culturais, educacionais e políticas àquilo que o Brasil acha que é.
Tomar ciência da profundidade desse debate e da importância dessa representatividade faz com que busquemos na fotografia uma forma de enfrentar o racismo e contrapor as narrativas estabelecidas como verdades únicas, por nós não mostradas.
A representação do negro nos livros didáticos é tema de debate em diversos setores da educação e se fortaleceu a partir da criação da Lei 10.639 em 2003, que coloca como obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. Você vê uma mudança significativa na forma como o negro ainda é retratado na nossa sociedade, pensando nas imagens mais comuns dos negros que circulavam nos espaços educacionais?
O que mudou em torno dessa questão, e mudou para melhor, foi a possibilidade, após a lei 10.639, de negros e negras recontarem suas histórias. Falarei sempre disso, porque não há compromisso de uma sociedade economicamente branca-cis-hétero-normativa abrir mão do status quo e questionar seus lugares sociais objetivos e subjetivos em nome de relações mais equânimes.
Toda a pressão, avanços positivos e produções que têm reconstruído a imagem do negro na sociedade brasileira são resultado de uma luta histórica dos diversos movimentos negros, ao longo da trajetória de presença africana no Brasil. A transformação se dá efetivamente quando seus protagonistas disputam nos diferentes espaços as narrativas de dignidade da imagem e do ser, e é isso que intelectuais, militantes, sacerdotes e sacerdotisas, homens e mulheres negros e negras têm insistido por aqui. É essa a reconstrução da história, e mexer nas estruturas de um país fundado na democracia racial que privilegia corpos não negros é uma preocupação da elite, e por isso a história do povo negro brasileiro tem sido e será recontada por esse povo.