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Gênero discursivo nos projetos culturais

Inti Queiroz é produtora cultural, linguista, filóloga e pesquisadora de cultura e políticas culturais e atualmente desenvolve pesquisa...

Publicado em 06/04/2015

Atualizado às 14:58 de 13/08/2017

Inti Queiroz é produtora cultural, linguista, filóloga e pesquisadora de cultura e políticas culturais. Desenvolve atualmente pesquisa de doutorado intitulada A Arquitetônica da Esfera Político-Cultural Brasileira nos Enunciados do Sistema Nacional de Cultura. Em 2014, recebeu o título de mestra com a pesquisa Projeto Cultural – As Especificidades de um Novo Gênero do Discurso.

Em conversa com o Observatório Itaú Cultural, ela fala sobre os resultados dessas pesquisas e comenta, entre outras questões, sua experiência como realizadora do festival de música PIB – Produto Instrumental Bruto.

OBS: Sua pesquisa tem como escopo as especificidades do gênero discursivo empregado (ou que deve ser empregado) nos projetos culturais. Em que consiste esse trabalho e qual sua importância para aprofundar as reflexões acerca das políticas públicas para a cultura?

IQ: Desde a minha iniciação científica, eu busco comprovar que o projeto cultural é um novo gênero discursivo na esfera das políticas culturais no Brasil e, a partir disso, mostrar as dificuldades da produção e da escrita de projetos. Esse também foi o foco da minha pesquisa de mestrado, concluída também na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), no início de 2014. Minha dissertação observou que o primeiro grande entrave na distribuição de verbas na produção cultural brasileira regulada por leis de incentivo à cultura e editais vem da complexidade da criação a da escrita de um projeto cultural, bem como de seu enquadramento em leis e editais. A escrita de um projeto demanda não apenas o domínio da língua portuguesa, mas também uma série de conhecimentos de outras esferas. A pesquisa comprovou que o projeto cultural é constituído de discursos de outras áreas (econômica, legislativa, midiática, corporativa etc.) e que, assim, é necessário que seus autores conheçam esses outros discursos para que seu trabalho consiga atingir plenamente seus objetivos. Além disso, o projeto cultural requer que as ideias de um produtor ou artista sejam transferidas para um texto. Porém, nem sempre isso é uma tarefa fácil. Um parecerista, ao ler um projeto, nunca chegará à mesma construção concreta que o proponente teve no momento em que criou aquele enunciado artístico. A pesquisa buscou o entendimento desse processo de criação. Compreender como, a partir de questões discursivas e linguísticas concretas, essa construção proporcionaria maior entendimento ao leitor do projeto cultural. Além do olhar da produção textual, a pesquisa também trouxe uma reflexão crítica acerca da conjuntura da esfera político-cultural no Brasil nos últimos 30 anos, observando principalmente as leis de incentivo à cultura, editais e processos político-econômicos relacionados.

Quando propus essa pesquisa, busquei abordar o assunto por áreas como a filologia, a linguística e a filosofia da linguagem. A partir da minha experiência como produtora cultural nos últimos 13 anos, escrevendo e produzindo projetos, percebi que uma das maiores dificuldades dos produtores era colocar suas ideias no papel.

Agora no doutorado, minha pesquisa mudou de objeto. Estou trabalhando com a construção do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e outros enunciados relacionados, como o Plano Nacional de Cultura (PNC) e os sistemas e planos estaduais e municipais. Vou observar a construção da esfera das políticas culturais no Brasil como uma nova estruturação e uma nova visão das políticas públicas de cultura num projeto de estado iniciado pelo ministro Gilberto Gil. Como estou na área de letras, observarei também as dificuldades para a escrita desses sistemas e planos em todo o país e como isso influencia na implantação do SNC como um todo. Já estou acompanhando alguns processos de implantação dos sistemas territoriais de perto. Sem dúvida, está sendo uma pesquisa de fôlego.

Como você avalia o atual modelo de editais?

Primeiramente, é preciso lembrar que, para concorrer em um edital cultural, é necessário que o proponente saiba escrever um bom projeto e que este seja regulado pelas demandas do edital. Essas demandas não são apenas estéticas e formais, são também político-ideológicas e econômicas. Os editais culturais no Brasil se dividem em dois tipos, aqueles diretamente ligados aos órgãos do executivo dos governos e aqueles que são lançados por empresas, escritos por departamentos de marketing e, em boa parte dos casos, vinculados a projetos culturais aprovados em mecanismos do mecenato. O modelo de avaliação dos editais culturais, comumente, é baseado em critérios meritocráticos. Requerem currículos com comprovação de experiência anterior com projetos. Em minha pesquisa, pude comprovar inclusive que muitos editais contam pontos para produtores com formação educacional superior em áreas relacionadas à linguagem artística do edital.

Temos alguns editais com viés mais democrático, como o Cultura Viva e o Programa Vai, em São Paulo, que permitem a participação de jovens iniciantes e priorizam projetos produzidos na periferia da cidade. Mas, infelizmente, esses programas ainda são exceção no país. A maioria dos editais ainda prioriza a meritocracia como critério de avaliação e não suporta a enorme demanda de recursos do setor. Hoje temos editais com mais de 200 inscritos por vaga. Quer dizer, poucos têm acesso às verbas. Quase sempre, quem sabe escrever um bom projeto, ou tem recursos para pagar um bom formatador de projetos, sai na frente.

Além disso, boa parte dos editais fomenta o que poderíamos chamar de um mercado de projetos eventuais. O formato atual não traz sustentabilidade alguma às propostas. Acaba o dinheiro, acaba o projeto. Com a reformulação da Funarte, que está em pauta atualmente, espero que isso seja pensado com muita calma. Sabemos que a verba da cultura é minúscula, porém, é preciso pensar em novas formas de reverter essa política de eventos de cultura em uma política de real fomento às artes e à cultura. Uma produção de cultura realmente sustentável.

Você pode falar um pouco sobre as leis de incentivo à cultura, considerando seus pontos favoráveis e desfavoráveis, a importância que tiveram para a construção do atual cenário cultural e os ajustes necessários para atender às novas demandas?

É bem claro para mim que estamos vivendo um momento de transição em relação às leis de incentivo à cultura, pois a Lei Rouanet está sendo colocada na parede e temos uma política cultural de estado em implantação a partir do SNC. Até uns cinco anos atrás, as leis de incentivo eram pouco comentadas, e ainda hoje só quem trabalha com projeto conhece mais a fundo como funcionam esses mecanismos. A grande mídia, por exemplo, costuma abordar o assunto sem maiores informações, e quase sempre distorce os fatos. Sem dúvida, a Lei Rouanet foi muito importante durante os seus 24 anos de existência. Proporcionou um aquecimento na produção de cultura, possibilitou a produção de mais de 30 mil projetos de todos os tipos; porém, chegou o momento de reavaliarmos sua atuação. Ainda que de fato tenha seu lado bom, ao permitir que milhares de projetos saiam do papel, apenas uma pequena parcela de produtores tem acesso às verbas da Rouanet. Ela se tornou uma lei para megaprojetos bancados por megaempresas e estrelados por mega-artistas. Nos últimos anos, a média de projetos aprovados que captaram recursos não passou de 30%, e grande parte das verbas captadas ficou na mão de meia dúzia de produtores. Tenho muitas críticas à Lei Rouanet, mas a principal delas é a de que não existe um mecanismo capaz de reverter para outros programas a verba de incentivo fiscal que “sobra”, isto é, a verba que não foi captada. É importante pensar que, neste momento, estamos batalhando pela aprovação da PEC da Cultura (PEC 421/2014), mas tivemos 70% das verbas de incentivo retornando ao cofre do tesouro nacional, pois a verba do incentivo não pode ser revertida ao FNC. Ou seja, não adianta aprovarmos mais verbas para a cultura se ainda tivermos a Lei Rouanet. A aprovação da Procultura, que vem substituir a Rouanet, busca como um dos pontos centrais reverter isso. Outro ponto crucial é o critério de aprovação de projetos e a dedução fiscal. Os artigos 18 e 26 da Rouanet são critérios puramente artísticos e não condizem com uma lei que visa distribuir recursos de forma realmente justa. Tenho visto muitos debates sobre o assunto, vários deles com informações totalmente equivocadas, e tenho procurado informar as pessoas sobre o assunto, tanto em meus cursos quanto em minhas redes sociais. Não adianta criarmos um pânico sobre o fim da Rouanet. O mecenato não vai acabar, ele apenas terá uma nova lei, implantada num processo de transição que será gradual e que buscará melhorar os mecanismos, os critérios e também algumas questões há muito polêmicas.

Entre os projetos dos quais você participa, destaca-se o PIB – Produto Instrumental Bruto, um dos poucos voltados exclusivamente para a música instrumental. Como se dá a produção desse festival e qual é a sua importância para a cena instrumental contemporânea?

Quando criamos o festival, em 2006, a ideia era fazer uma mostra de bandas da nova música instrumental que estavam surgindo nos quatro cantos do país. Por ser um festival de música instrumental, isto é, de uma música que está bem distante do que é a música comercial, nunca foi fácil levantarmos a sua produção. Desde a primeira edição do evento, atuo como curadora e produtora-executiva. Durante 365 dias do ano, eu sou a única que atua concretamente na produção do PIB, sendo não apenas a produtora, mas quem cuida das redes sociais, dos e-mails, dos processos de construção e interação do projeto ao longo do ano. Em todas as edições, abrimos inscrições para bandas instrumentais interessadas em participar. Neste ano, recebemos 208 inscrições, porém, apenas 12 bandas serão selecionadas. Levamos em conta a sinergia com a proposta do festival de mostrar essa nova sonoridade totalmente diversificada e de vanguarda. Desde que o festival surgiu, sentimos que a cena dessa nova música instrumental tomou força, as bandas se encontraram, criaram ações conjuntas e passaram a se reconhecer como parte dessa cena, que não é pautada pela música instrumental mais tradicional inspirada no jazz brasileiro.

A primeira edição do festival aconteceu em 2007 e contou com verba de um edital de festivais do Programa de Ação Cultural (ProAC). Nos dois anos seguintes, tivemos patrocínios de empresas via ProAC mecenato. Quando estávamos caminhando para a quarta edição, percebemos que o festival tinha crescido além da conta, e que seu tamanho dentro da cena da música independente não condizia com seu tamanho dentro do mercado de patrocínios. Foi ficando cada vez mais difícil conseguir recursos para realizá-lo. Em 2011, aprovamos um projeto no ProAC para realização da quarta edição, que incluía também uma itinerância pelo interior. Hoje, percebo que não foi uma boa estratégia, pois ficou bem claro que o mercado de patrocínios não queria um projeto como o nosso. Esse mercado busca cada vez mais visibilidade, patrocinando projetos com artistas populares. Isso é uma das heranças da Lei Rouanet e seus megaprojetos. Cheguei a ouvir de captadores e possíveis patrocinadores argumentos absurdos como: “Por que você não coloca uma dupla sertaneja em seu festival? Seria mais fácil de vender”. Por conta disso, decidimos reduzir o tamanho do festival e trazê-lo de volta às origens, à cena da música independente. Desde então, temos feito o festival − que neste ano caminha para a sua sexta edição − com recursos próprios e apoios, de forma colaborativa e pautados pelo espírito do “faça você mesmo”.

A partir da nossa experiência no PIB, podemos dizer que uma das principais questões que devem ser repensadas em relação às políticas culturais no país diz respeito a esse formato de projetos eventuais regulados por editais e leis de incentivo em contraponto à sustentabilidade das propostas que outros tipos de políticas culturais deveriam proporcionar. Todo ano é uma luta que recomeça quase que do zero. Festivais, bandas, grupos de teatro lutam diariamente para reconstruir seus projetos do zero. Quando acaba o período de execução, acaba o dinheiro, a equipe se dispersa e a batalha recomeça. Não é difícil só para a gente, é difícil para centenas de produtores e artistas de todo o país.

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