Há 25 anos, 330 policiais participaram de uma ação para conter uma rebelião no pavilhão número 9 ...
Publicado em 09/10/2017
Atualizado às 14:55 de 21/09/2018
Há 25 anos, 330 policiais participaram de uma ação para conter uma rebelião no pavilhão número 9 do então maior e superlotado presídio da América Latina, o Carandiru: eram mais de 7 mil homens encarcerados em um espaço com capacidade para 3.250 pessoas. Dias após o encontro Brechas Urbanas com o tema A Violência e o Sujeito sem Direito à Cidade, iniciamos outubro de 2017 lembrando o massacre do Carandiru e tentando lidar com dois outros números tão impactantes quanto contraditórios: 111 mortos e ninguém punido após tantos anos de julgamento.
Foi também no início da década de 1990 que a cidade de São Paulo conseguiu um feito único no mundo: a redução no número de homicídios, que então era crescente, com até cem chacinas por ano. Nesse período, Bruno Paes Manso, doutor e pós-doutorando no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), já realizava pesquisas com os chamados matadores, ou seja, as pessoas por trás do ciclo de mortes por vingança entre grupos rivais nas periferias da capital paulista. A motivação do seu trabalho, pesquisar os homicídios e investigar maneiras de zelar pelo direito à vida, é também a intenção do recém-lançado projeto Monitor da Violência, que mapeia as causas de mortes em todo o país.
“Em 1992 foi o massacre do Carandiru e em 1993 surgiu o PCC [Primeiro Comando da Capital]. Os homicídios diminuíram e o sistema penitenciário se transformou: eram 30 mil presos, hoje são 220 mil. Nesse processo de aprisionamento massivo, foi construído um mundo atrás das grades: incluindo familiares, são cerca de 1 milhão de pessoas nesse universo. Se essa população fosse uma cidade, seria a segunda maior do estado de São Paulo.”
Bruno Paes Manso, doutor e pós-doutorando no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo
O que significa segregar populações tão grandes dentro do território específico que é o cárcere? E quem são as pessoas aprisionadas?
A antropóloga Mariana Varela atua com o encarceramento feminino no Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e explica que o sistema de justiça trabalha muito com a noção de indivíduo, quando, na verdade, o que se pode observar é que as penitenciárias estão ocupadas por uma parcela específica da população: são pessoas majoritariamente negras e pobres.
“No fundo, o que vivemos é a criminalização da pobreza e da raça.”
Mariana Varela, antropóloga no Instituto Terra, Trabalho e Cidadania
Antes de entrar para a categoria ideológica de criminosos, sua vida, na maioria das vezes, era marcada pela escassez: de moradia, de saúde, de educação, de acesso a bens, de afeto, de liberdade de trânsito. No caso das mulheres, Mariana ressalta, muitas sofriam violência doméstica antes da prisão e cerca de 60% foram condenadas pelo tráfico de drogas: uma tipologia que inúmeras vezes pune o dependente (usuário ou empregado) do negócio como se este fosse o empreendedor traficante.
Encarceradas, habitam um espaço de extrema violação e violência, onde são despidas dos seus direitos como cidadãs e ficam ainda mais presas a um ciclo de privação, solidão e impossibilidade de reinserção digna na vida social. Por que a sociedade não tem acesso ao que acontece dentro dos presídios? A quem interessa que essa realidade não seja conhecida? As perguntas de Mariana são um convite à reflexão crítica.
“Quando nós falamos sobre violência na cidade e sobre o encarceramento, estamos falando também sobre o outro, sobre o outro que é vulnerável, que não é escutado.”
Túlio Augusto Custódio, sociólogo, curador de conhecimento na Inesplorato e mediador do encontro Brechas Urbanas de setembro
gente viva
São gestantes e lactantes. Mulheres singulares e complexas contam sua história de vida e seu momento de maternidade. Fotografias e palavras escritas, uma impressão em papel. Folheio o livro e sou tocada pelas "mães do cárcere".
“Era muito humilhante, fila de cadeia é triste demais. E lá a revista era pesada. Tira a roupa, abre as pernas, faz força, abaixa, levanta. Muito humilhante. Mas eu ia toda semana. Tinha pena dele. Depois de um ano, comecei a fazer visitas íntimas.
Foi lá que engravidei. Mas só fui descobrir quando eu fui presa.
Eu chegando em casa do trabalho e o policial me esperando.
O juiz considerou que eu era cúmplice do Magno no tráfico.”
Fernanda, de 25 anos, em Mães do Cárcere, livro de Leo Drumond e Natália Martino
Leo Drumond e Natália Martino fazem parte do Projeto Voz, um conjunto de iniciativas de comunicação ligadas ao sistema carcerário, com o objetivo de fazer ecoar a vida daqueles que estão isolados em muros penitenciários.
Ao longo de um ano, os autores mineiros adentraram o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade em Vespasiano, cidade próxima a Belo Horizonte, para ouvir, registrar e compartilhar a narrativa das mulheres gestantes presas em Minas Gerais: o local recebe todas as grávidas do sistema carcerário do estado até que as crianças cheguem à idade de 1 ano. Após isso, os filhos são afastados das mães, que são transferidas para unidades-padrão.
Como toda a comunicação de encarcerados é censurada – eles não têm acesso a meios de comunicação eletrônicos ou digitais e sua correspondência é violada –, o papel ainda é o suporte ideal para a contação de suas histórias: revistas e livros precisam circular também no ambiente onde vivem seus protagonistas.
Registro cotidiano, documento histórico, troca artística, ponte entre muros: brechas. Todas as linguagens que podem aproximar cidades que não se conhecem... e esboçar sobrevivências e convivências. O trabalho de Leo e Natália parece um ensaio para uma nova tessitura de encontros: uma costura para lembrar a urgência de cuidarmos da vida, ouvindo – desencouraçados – sua fragilidade e sua potência para além dos dados.