Espetáculo teatral reúne lendas, costumes e crenças antigas das cidades atingidas por construções de usinas hidrelétricas, em uma tentativa de conectar passado e presente
Publicado em 05/03/2019
Atualizado às 15:17 de 14/08/2019
por Marina Lahr
Identidade cultural. Assim define-se essencialmente o sentimento de pertencimento humano a diferentes culturas e a distintos grupos sociais. O conjunto de costumes e tradições de um povo, transmitido normalmente de geração em geração ao longo da história, tende a aproximar as pessoas, conectando suas experiências de vida e moldando suas personalidades. É um processo praticamente inerente à condição humana. Mas o que acontece quando a identificação cultural de um grupo é destruída? É possível resgatar crenças, hábitos e expressões do imaginário de um povo que foi retirado de seu espaço nativo contra sua vontade?
Essa dura realidade de perda cultural, repetidamente enfrentada pelas populações ribeirinhas que povoam as cidades atingidas pelas construções de usinas hidrelétricas, é a base central do espetáculo Histórias Andantes, apoiado pela edição 2017-2018 do programa Rumos Itaú Cultural e que vai percorrer as cidades de Paulo Afonso (BA), Petrolândia (PE), Glória (BA), Sobradinho (BA), Xingó (AL) e Canindé do São Francisco (SE). A encenação promete reavivar a memória dos habitantes de povoados afetados por barragens e combater a dor da saudade compartilhando histórias e lendas através de poesias, literatura de cordel, brincadeiras e músicas, sempre preservando a oralidade tradicional, já esquecida pelos moradores dessas regiões.
No Brasil, milhões de pessoas foram ou ainda são afetadas em suas culturas, em suas formas de sobrevivência e, principalmente, em seus direitos à moradia adequada e à qualidade de vida devido aos projetos de geração de energia através da força dos rios. A realocação de pessoas e residências é a problemática dominante. Para Jackson Cavalcante, idealizador do projeto e produtor da peça, retratar a real condição das populações após as mudanças é o tópico mais importante da iniciativa.
"As empresas responsáveis pela construção das hidrelétricas não querem saber dos impactos sociais e ambientais, de como essas mudanças afetaram os indivíduos e suas famílias. Entregam uma terra, realocam a cidade, mas não voltam para saber o que aconteceu depois desse reposicionamento. Os depoimentos que temos sobre essas situações são depoimentos de muita tristeza, muita indignação, porque as pessoas foram realmente prejudicadas, em tudo", conta.
Para desenvolver o roteiro de Histórias Andantes, Jackson e seu grupo de produção cultural, o Traquinagem de Cabeça, realizaram uma série de pesquisas em povoados do meio rural pertencentes à cidade de Paulo Afonso, na Bahia. O município possui um histórico notório nessa temática, após ter sido dividido por um muro durante 30 anos a partir da instalação da Companhia Hidrelétrica do São Francisco. A cultura e as tradições populares dos residentes paulo-afonsinos foram se deteriorando ao longo do tempo, o que despertou em Jackson, natural dessa cidade baiana, o desejo de recuperar os antigos costumes e apresentar aos moradores mais jovens a herança cultural, não só de sua região, mas também de outras localidades que foram impactadas de forma semelhante pelas barragens de hidrelétricas.
"Precisamos resgatar a cultura e fazer com que as pessoas se interessem novamente pelo mundo da arte e pelas questões sociais, políticas e ambientais que envolvem essa realidade. Valorizar as pessoas que sofreram ao perder suas casas e com a separação de suas famílias e amigos nos processos de realocação também é o nosso objetivo, porque elas precisam disso. Queremos dar voz aos anônimos", explica Jackson.
Além de circular a peça Histórias Andantes por seis cidades do Nordeste, o projeto promoverá oficinas de contação de histórias em cada uma delas, focando o ensino de cultura, valores e identidade cultural, social e humana, além de valorizar a tradição oral.
"Antigamente a contação de histórias era uma prática muito comum nas pequenas cidades e incentivava muito os jovens e a própria cultura em si, porque, fazendo parte da oralidade, não se perdia, estava sempre contada, sempre viva", diz o idealizador. "Com a construção das hidrelétricas, a consequente realocação das pessoas e, ainda, a morte dos mais experientes, essa prática foi acabando e perdendo o sentido. Com as oficinas e o projeto em sua totalidade pretendemos criar uma ponte entre o passado e o presente."