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Impactos da cidadania participativa em Medellín | Jorge Melguizo

Jorge Melguizo, ex-secretário da Cultura e de Desenvolvimento Social da cidade de Medellín, na Colômbia, nos fala sobre alguns dos...

Publicado em 04/08/2017

Atualizado às 21:06 de 27/11/2017

Nesta entrevista podemos perceber a importância da participação cidadã. A transformação da cidade colombiana de Medellín – de uma das mais violentas do mundo para uma das mais inovadoras – é um exemplo do que pode ser construído quando se pensa a cultura de maneira transversal e em diálogo com outras áreas. Explorando esse cenário, Jorge Melguizo compartilha algumas experiências que estão sendo promovidas em Envigado, cidade vizinha a Medellín, nessa mesma perspectiva de cidadania participativa.

Jorge Melguizo é jornalista, consultor e professor de gestão pública, cultura cidadã, desenvolvimento organizacional da sociedade civil, convivência e segurança. Foi gerente do Centro Medellín e secretário da Cultura e de Desenvolvimento Social. Faz parte do Coletivo Envigado, criado em 2012.

Cidade de Medellin

Você pode comentar quais foram os principais desafios que encontrou em Medellín quando atuou como secretário municipal de Cultura Cidadã e de Desenvolvimento Social entre os anos 2005 e 2010?

No governo da cidade de Medellín os principais desafios nesses anos foram a altíssima taxa de morte por violência (passamos de 382 mortes por 100 mil habitantes em 1991 a 19 mortes por 100 mil habitantes em 2016), a iniquidade, a falta de coesão entre os bairros da cidade (essa enorme separação social), a corrupção incorporada por anos na administração pública e a falta de articulação entre entidades do governo para atuar de maneira integral nos diferentes bairros.

Na Secretaria de Cultura Cidadã (2005-2009), os desafios principais foram: o melhoramento do orçamento (passamos de 0,68% a 5% do orçamento municipal), a construção e a gestão de infraestruturas para a cultura (fizemos nestes cinco anos 30 novos equipamentos, a maioria deles em bairros com menor índice de desenvolvimento humano, com maior demografia e com maiores índices de violência) e o fortalecimento dos projetos culturais que já existiam, tanto formais (museus, orquestras, teatros) como informais (os pontos de cultura, todas as expressões culturais comunitárias).

Na Secretaria de Desenvolvimento Social (2009-2010), os principais desafios foram: a consolidação do Orçamento Participativo (5% do orçamento da cidade), que levou à elaboração de 21 planos de desenvolvimento local (para 16 comunidades urbanas e 5 rurais), e o fortalecimento das organizações da sociedade civil, que é o que permite garantir a governança e a sustentabilidade das políticas e dos programas públicos.

Desde 2012, você faz parte do Coletivo Envigado. Pode comentar como e quando surgiram as ações desenvolvidas pelo coletivo?

Cidadão Envigado é um grupo de vizinhos e vizinhas do bairro em que vivo, El Esmeraldal, na cidade de Envigado, com 220 mil habitantes, vizinha a Medellín. Nos organizamos para lutar pela melhor qualidade do bairro, nos aspectos urbanos, ambientais e culturais.

As principais conquistas do coletivo foram:

•  A mudança na norma urbanística da cidade para evitar uma exagerada densificação;

•  Frear a construção de oito edifícios com quase 500 apartamentos;

•  Ganhar 30 mil metros quadrados de parques para o bairro e desenhar um plano de gestão para esses parques, que se estenderá aos demais parques de toda Envigado;

•  Ganhar cinco casas que seriam demolidas para a construção de edifícios e integrá-los a três fundações: uma que trabalha com pessoas com deficiências cognitivas, outra com pessoas com deficiências físicas e outra com crianças portadoras de HIV;

•  Influenciar o governo de Envigado a aumentar em 500% o orçamento para cultura entre 2016-2017;

•  Um dos nossos projetos (três versões realizadas em um ano) é um Mercado Cultural, em que os vizinhos vendem aos seus vizinhos obras de arte, artesanatos e produtos de fabricação própria, especialmente, de gastronomia.

Parque Explora

Você já esteve no Brasil várias vezes e conhece, de certa forma, algumas das nossas realidades. Na sua percepção, quais são os desafios dos gestores nas implantações de políticas públicas voltadas à cultura aqui no Brasil?

Creio que é necessário gerar espaços reais de diálogos entre os projetos culturais comunitários, privados e públicos. O que eu percebo hoje no Brasil é um grande afastamento do governo nacional frente aos projetos culturais em marcha (históricos e novos) e um grande afastamento entre os governos municipais e estaduais de suas realidades próximas.

Penso que na atual situação do Brasil, com a enorme desconfiança cidadã em relação a seus políticos e seus governantes, é necessário gerar espaços de construção de confiança. Mas também creio que é urgente que todos os setores culturais se impulsionem por reformas claras nas políticas sociais e culturais do país, em todos os níveis do governo. Na atual crise brasileira, a cultura tem muito para propor e fazer. Esta é a necessária transformação social e cultural que se requer.

Na sua opinião, o que o Brasil e a Colômbia têm de experiências em políticas culturais para trocar e aprender um com o outro?

Bem, Brasil e Colômbia têm muito em comum em sua construção social e cultural, em suas raízes, em seus imaginários e em seus processos. O enorme desconhecimento mútuo, produto possivelmente da barreira geográfica e do idioma, faz com que também seja enorme o desafio de aproximação cultural, de compartilhar políticas, estratégias, programas, projetos e ações.

Sala infantil da Biblioteca Parque Fernando Botero

Um dos aspectos que é criticado nas políticas públicas é a falta de continuidade nas ações desenvolvidas, principalmente, entre uma gestão e outra. Você pode comentar se isso ocorreu nos modelos de gestão que foram implementados nos parques bibliotecas ou nas casas de cultura de Medellín?

A sustentabilidade dos projetos públicos, sejam culturais ou de outras naturezas, não pode depender da continuidade de um partido ou outro na gestão do governo. A garantia de sustentabilidade dos projetos públicos deve recair na apropriação que a comunidade tem desses projetos, em sua participação ativa nas diferentes etapas deles e na qualidade que esses projetos possuem.

Em Medellín, os principais projetos culturais que desenhamos desde 2004 – parques bibliotecas, centros de desenvolvimento cultural, escolas de música; bolsas de estudos para criação e circulação; Festa do Livro e da Cultura; entrada livre a teatros e museus; Cultura Viva Comunitária; Plano de Desenvolvimento Cultural 2010-2020 etc. – se mantêm hoje pelos resultados que têm, pela qualidade do que seguem oferecendo e gerando e pela grande participação de amplos setores da comunidade (não só do setor cultural) em sua construção. Além do mais, muitos desses programas são também hoje políticas públicas, aprovadas por leis municipais, de cumprimento obrigatório dos novos governos.

Você conhece as bibliotecas parques implantadas no Brasil? No Rio de Janeiro, foram implantadas três, que fecharam este ano. Você teria alguma sugestão de modelo de gestão que permita a sustentabilidade a longo prazo desses importantes equipamentos culturais?

Sei da existência dessas bibliotecas parques (não sabia que fecharam este ano), porém não as conheço e nem as visitei. Teria de fazer uma boa análise para saber o que aconteceu com elas.

Em Medellín, o êxito dos nove parques bibliotecas se deve a várias razões, são elas:

•  Foram construídos em bairros de maiores níveis de pobreza, violência e demografia;

•  Fazem parte de projetos urbanos integrados mais amplos. Quer dizer, o parque biblioteca é uma das estratégias em um conjunto de 30 ou 40 grandes projetos de intervenção integrada e articulada nesses bairros;

•  Fazem parte do sistema de bibliotecas de Medellín (29 bibliotecas públicas) e da rede de bibliotecas de Medellín e da área metropolitana (40 bibliotecas em dez cidades);

•  Têm um excelente orçamento anual de funcionamento e programação de qualidade (uma média de 700 mil de dólares ao ano);

•  São equipamentos múltiplos: biblioteca, ludoteca, salas de internet, salas de exposições, teatros, salas para oficinas, centros de apoio a empreendedores, escolas de músicas, salas Meu Bairro (para a memória do bairro e para as organizações do entorno) e espaços públicos de usos múltiplos;

•  Os edifícios são emblemáticos, se converteram em referência para a cidade por sua excelência arquitetônica;

•  Ao mesmo tempo em que se trabalhou a arquitetura física, se trabalhou com profundidade a arquitetura de intempérie, a arquitetura social: o parque biblioteca não é um edifício, mas um grande projeto social, em que a comunidade tem participado desde seu início e, por isso, seu alto nível de apropriação;

•  A cada semana, os nove parques bibliotecas recebem uma média de 110 mil visitantes, o que equivale a encher semanalmente duas vezes e meia nosso estádio de futebol. Esse número dá conta de sua apropriação.

Concha acústica da Biblioteca Parque Gabriel Garcia Marquez

Um dos desafios para os espaços alternativos (como coletivos artísticos ou ocupações) é a questão da sustentabilidade (financeira e manutenção das estruturas físicas). Você conhece casos de espaços como esses que estão repensando os modelos de gestão? Conhece os resultados?

Não se pode pedir a um equipamento cultural público que seja autossustentável financeiramente. Como não se pode pedir o mesmo a um colégio público, a um hospital público, a um espaço público, a uma via pública e nem a uma quadra poliesportiva pública. O público é uma estratégia de geração de inclusão, equidade e oportunidades.

Quando me perguntam por sustentabilidade em projetos culturais, respondo de outra maneira: a cultura é um dos quatro pilares do desenvolvimento sustentável, junto com os programas sociais, ambientais e econômicos. Investir em cultura fará mais sustentável uma sociedade.

Em relação ao público, foi pensada alguma ação específica? Conseguiram dialogar com públicos diferentes?

Boa parte dos projetos culturais de Medellín nos últimos anos tem tido como norte a formação de públicos. Assumir a cultura como um direito, e não como privilégio, passa também por convocar novos públicos (todos aqueles que não se aproximavam da cultura, que é a maioria da população). Entradas livres a museus, comprar e adequar um teatro para convertê-lo em um centro de programação cultural com entrada livre sempre; consertar todas as salas de teatros da cidade com políticas de apoio em troca de ter entradas livres um dia por mês; gerar uma grande oferta de programação diversificada para todos os públicos e gostos; e criar uma série de eventos para conhecer, reconhecer e potencializar outras culturas presentes, porém invisíveis ou invisibilizadas, fazem parte dessas estratégias de formação de públicos, que é basicamente uma política de inclusão social.

Finalmente, como podemos pensar o papel do gestor em relação à convivência cultural nos espaços de conflitos em que o Estado não entra?

Dizemos que em Medellín o contrário da insegurança não é a segurança, mas a convivência. E que esta se constrói com projetos sociais, educativos e culturais. O Estado tem de entrar, tem de chegar aonde não havia chegado. As políticas públicas, e especialmente as políticas culturais, têm de poder converter todo o território de uma cidade em espaço de concretização de estratégias de criação, circulação e serviços. Em Medellín, a cultura e o esporte foram estratégias-chaves para gerar essa maior presença do Estado em todos os territórios.


Salas de dança e exposições na Biblioteca Parque Gabriel Garcia Marquez.

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