Cantora esteve entre os artistas que falaram aqui no site sobre a experiência de um mês em isolamento, em abril de 2020. Agora ela volta para contar o que fez e como viveu nesse um ano de pandemia
Publicado em 11/03/2021
Atualizado às 12:22 de 18/07/2022
por Tulipa Ruiz
No ano de 2019, fui convidada para uma turnê e uma residência artística na China, que aconteceria em janeiro de 2020. Aceitei com frio na barriga o convite para a trip oriental e celebrei meu ofício de “cantautora”, por tantas trocas e imersões culturais, sociais e espirituais. Havia sido um ano bom de trabalho, mas meio punk de saúde, porque tive alguns episódios de amidalite que me derrubaram. E, mesmo sendo superadepta da medicina ayurvédica e chinesa, achei melhor fazer uma malinha de alopatia para não correr o risco de ter dor de garganta do outro lado do planeta. Viajei com um arsenal de antibióticos. Vai que alguém tem alguma infecção, pega uma bactéria, vírus, sei lá. Então, eu tinha na mochila cúrcuma e amoxilina, própolis e azitromicina. E um tubinho de álcool em gel que sempre carrego na bolsa. Entre o Oriente e o Ocidente, o caminho do meio.
Veja também:
>>Arte e sanidade: Seminário arte como respiro debate um ano de pandemia
>> Isolamento em imagens (artistas em tempos de pandemia)
>>Um planeta de refugiados ambientais: um ano de pandemia, por Ailton Krenak
>>Caramba!: um ano de pandemia, por Silvero Pereira
A viagem estava marcada para o dia 1o de janeiro de 2020. Quando entrei no avião e apertei o cinto de segurança, veio uma sensação estranha, de que a vida não seria mais a mesma. Um estado de alerta. E não era exatamente uma sensação pessoal, era sobre a existência em si. Difícil de explicar, mas me parece natural esse tipo de pensamento brotar quando você pega um avião para a China. Atravessar culturas dói. Cheguei a Pequim muito observadora e encantada. Ainda estava encanada por causa da dor de garganta e, como lá estava frio, logo comprei uma máscara para eu não respirar ar gelado. Estava montando meu kit de sobrevivência sem saber que precisaria dele.
Entre as cidades pelas quais passaríamos, uma delas seria Wuhan, mas o show foi cancelado um pouco antes de embarcarmos. Se tivéssemos passado por lá, provavelmente teríamos ficado em quarentena na China. Foi por pouco. O segundo show, depois de Pequim, foi em uma cidade chamada Chengdu, capital da província de Sichuan. Fiz o flyer no avião, um desenho em cima de uma notícia de um jornal chinês. Bem depois, soube que havia feito meu desenho em cima de uma das primeiras notícias sobre o vírus – “sinossincronicidades”.
Os shows e a residência foram incríveis. Muitas trocas, público atento e generoso. Em cada cidade, uma experiência diferente. Preciso de mais tempo para decupar a China. Seria necessário outro texto para desenhar minhas impressões sobre a sociedade chinesa, o controle do Estado, o consumo capitalista em um país socialista e as semelhanças entre as pessoas de Xangai com as do Xingu, além dos encontros com pessoas preciosas. Mas isso é papo para outro caderno, e o assunto aqui é a sobrevivência em um mundo pandêmico.
A gente só sentiu o baixo astral do vírus e o perigo iminente já no fim da turnê, depois do ano-novo chinês. Antes o vírus estava localizado em Wuhan, mas no ano-novo os chineses voltam para as suas províncias e – pow! – chuva de vírus por todos os lados. Aí nossa viagem virou osso. A China fechou, tudo fechou. Parecia um filme de ficção científica de baixo orçamento, e a gente só queria voltar para casa; afinal, o vírus não nos alcançaria em São Paulo. Conseguimos sair por Xangai, com escala nos Estados Unidos, pânico de ficar com máscara no avião, e até hoje não compreendo por que não ficamos em quarentena quando chegamos ao Brasil e não passamos por nenhuma inspeção em Dallas. Esse vírus tem pipocado por aqui bem antes do Carnaval, e o delay para lidar com esse fato é de um descuido governamental tremendo.
Cheguei a São Paulo exausta; tirar a máscara depois de 24 horas dentro de um avião é uma sensação que ainda não sei descrever. Quando cheguei em casa, minha prima me convidou para uma festa dançante, a Discopedia, onde só tocaria Djavan. O desejo de dançar, abraçar, encontrar pessoas sem medo de ficar doente foi maior que meu cansaço. Quando estava no meio da pista, com as pessoas cantando de braços abertos “Eu quero é viver em paz, por favor me beije a boca, que louca, que louca”, chorei feito criança. Esse vírus jamais chegaria por aqui. Nossos corpos abertos estavam fechados para ele.
Antes da pandemia trabalhamos pouco, porque as coisas por aqui só começam a borbulhar depois do Carnaval. Fiz apenas dois shows, um deles com meu mestre João Donato, que graças à Deusa já está vacinado, e outro só com minha banda, Pipoco das Galáxias. Um ano sem show com meus meninos. Quanta distopia.
A última festa a que fui foi o aniversário do meu irmão. Por coincidência, hoje [2 de março] faz um ano, e a comemoração será dentro dos protocolos. Não haverá abraços. Estamos aprendendo a celebrar nossos encontros de outras formas, e nunca foi tão fundamental verbalizar o amor. Sem o toque, as coisas precisam ser ditas. Nossa imunidade e humanidade agradecem.
Logo depois do aniversário do meu irmão no ano passado, a pandemia foi oficializada no Brasil. Chorei quando soube que o vírus tinha nos alcançado e sabia que a partir disso as coisas poderiam piorar. Eu estava vivendo a pandemia pela segunda vez. Organizei-me para ficar em casa, fiz uma compra de mantimentos para a minha mãe e o meu pai, que têm mais de 60 anos, e os alertei da importância de não sairmos de casa, para nossa proteção e a dos outros. Até hoje sou eu quem me organizo com as compras de álcool e máscara para minha árvore.
Durante esse ano de pandemia e desmonte, cada dia e cada projeto realizado é uma conquista hercúlea. Resistimos individualmente e coletivamente. Para mim não foi tão simples, assim de cara, fazer músicas ou trocar ideias em lives. Não foi possível estar em confinamento e criar conteúdos. Ou fazer pães incríveis com levains descolados, aulas de ioga on-line ou começar aquele curso de estamparia de que eu tanto estava a fim. Travei no começo. Não fiz música, não pensei em refrão. A distopia me congelou, e precisei respeitar o meu silêncio. Mas tenho a sorte de morar perto do meu irmão, Gustavo, que também estava isolado, e temos nosso estúdio. Então, mesmo sem banda, comecei aos poucos a fazer um som com ele. Fizemos poucas lives, mas foram todas muito intensas e profundas e a partir da nossa troca. Todas com o coração na boca. A partir desses encontros com Gustavo, fui dialogando com meu silêncio e descobrindo o que comunicar.
Nós da música fomos um dos primeiros setores a parar na pandemia. Trabalho com uma equipe grande, e é barra a gente não estar com a nossa operação na ativa. Durante três meses, organizei uma série de bate-papos com os profissionais que trabalham comigo para falarmos sobre as potencialidades de cada um. Foram conversas importantes e de fortalecimento. Tantas saudades, né? Da minha equipe, do meu público. Não costumo fazer live conversando com as pessoas, mas nesses dias acordei com uma saudade das pessoas que vão ao meu show. Que são generosas com a minha música. Que me olham no olho enquanto dançam. Fiquei horas conversando com o meu público em uma live na qual meu objetivo era saber se a galera estava bem. Sem o show, a gente ainda está descobrindo como é a experiência artística de comunicação no virtual.
Nos meus processos, fazer arte no ambiente virtual, apesar da urgência por causa do confinamento, é uma experiência de linguagem. Não posso me deixar atropelar pela dispersão de feeds, abas e pop-ups nem ficar "noiada" com analytics, métricas e algoritmos que mudam a cada dia, porque isso não soma ao meu ofício. Meu pensamento segue analógico e eu procuro terrenos férteis no ambiente digital.
A partir da hiperdemanda de narrar o cotidiano (que o ciberespaço pandêmico cisma em cobrar da gente), busquei exercitar outras velocidades. Fui mergulhar no tempo da aquarela e na velocidade de uma nuvem passando por uma estrela. Voltei meu olhar para a durabilidade poética das coisas Efêmeras*, bem no ano em que o meu primeiro disco fez dez anos. Organizei o meu "merchan", coisa que não consegui fazer nesses anos todos por causa do trânsito nas turnês, tricotei muito, reformulei a minha marca e produtora, a Brocal. A música está em todos os meus processos, mas também fiz outras coisas para pagar o meu aluguel, que, se eu for ouvir bem, também são música.
A vida é infinita.
*Efêmera é o nome do disco de estreia de Tulipa Ruiz, lançado em junho de 2010.
Tulipa Ruiz é cantora, compositora e ilustradora.