Nessa edição de Sankofas, o colunista Alexandre Ribeiro conta a história da sua viagem de São Paulo para Moçambique
Publicado em 14/05/2018
Atualizado às 18:57 de 09/02/2023
[relato de Alexandre]
A minha viagem de São Paulo até Moçambique ficou marcada com uma imagem: meus pés amassando o barro na ponte que dá acesso ao aeroporto. Aliás, cê sabia que dá pra ir pro aeroporto de busão?
É engraçado como um aeroporto se parece com um shopping. Desde meu primeiro emprego naquela loja de marca, muitos já tentavam limitar meu olhar. Eles temem que gente que nem eu encontre essas semelhanças do mundo.
Meus pés só deram conta de tudo que cruzaram quando um bateu no outro, num reflexo. Dormindo no saguão, acordei quando senti um cara tentando roubar meu tênis, bem devagarinho [...] É mole? Nem todo romance vive só de utopia.
Mas foi essa batida que deixou um pedacinho de barro no chão do aeroporto. O barro que se misturou, da terra de Guarulhos à de Moçambique. Desde o maldoso apelido “pé de barro” da minha região sem asfalto até o sagrado que tocou meus pés e fez com que eu sentisse o meu passado.
Isso tudo é sobre a terra.
Eu nunca vou esquecer aquele momento. Eu deixei a aeronave, encontrei com a família local que me esperava, e então cruzamos quatro ruas até chegar ao verde da mata. Ao verde cintilante que soprou no meu peito: “Ei, você chegou! Você finalmente chegou em casa”.
Meu corpo se arrepiou por inteiro sem identificar motivos. Eu senti uma árvore genealógica trovoar no meu peito, como se toda a informação familiar que eu nunca tive saltasse aos meus olhos em uma epifania.
Nos dias em que fiquei por lá, enxerguei a profundidade antes da cútis. Em Moçambique eu pude conhecer a conexão de dois continentes através da mesma língua, ver como nossos costumes se parecem, como um país pode ser destroçado pela corrupção, como nossas culturas se complementam, mas principalmente: o respeito pela individualidade de cada ser. No momento em que me chamaram de molungo (branco/gringo, em tradução livre do changana para o português do Brasil) foi que eu refleti sobre a individualidade do meu ser.
Eu tenho minhas questões com a cor da minha pele, ainda peno para dizer “Sou preto”. Me chamam, mas não sei se sou. E sei que vários também. Porque, quando eu olho no espelho, vejo uma diferença. Uma mistura de fenótipos, de traços, de cabelos, de peles, de pensamentos. E que resulta em mim. Antes de movimento, uma potência individual.
Um apontamento sincero do outro, de outro continente, me fez repensar. Repensar sobre quem eu realmente enxergo no espelho. É importante ouvir a pergunta do outro. Quem é você? Essa resposta só o terreno fértil do peito pode entregar. Cultive flores.
Olhar para dentro de mim, perguntando quem eu sou, me leva ao que vivi, às coisas que aprendi e às voltas que dei. Me leva ao começo. Não sei ao certo se eu queria que fosse assim, mas sou um desses moleques que cresceram em uma ocupação. Me quebrou por dentro o que aconteceu na Ocupação Paissandu. Aquilo também foi comigo.
Quantos sonhos se fazem numa casa? Quantos iguaizinhos a mim não estavam ali? E por que tanta gente se irrita com nossa vitória?
Eu não tenho essas respostas, mas sei que somente uma ocupação foi a saída para minha família poder ter uma casa, para eu poder crescer. Meu corpo se arrepia a cada momento que lembro que é possível. É possível combater ignorância com conhecimento, é possível ser mais. Mesmo que chamem meu povo de vagabundo, de invasor, nós fazemos o impossível ser possível. Todos da Passagem Guimarães estudaram, trabalharam e estão buscando um lugar melhor. Não tem vagabundo, tem um povo com uma necessidade. E isso não é uma exceção.
Se eu atravesso o mundo, é porque tive ao menos um direito. Moradia é direito de todos.
Não nos tirem o direito de sonhar, porque, por mais que vocês tentem, esperanças feito as minhas só se multiplicam. Se nos tiram daqui, a gente corre e faz de outro jeito. Pois quem firma os pés é capaz de alçar voos. Moradia é direito de todos. E isso tudo é sobre a terra.