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Publicado em 02/09/2014
Atualizado às 14:59 de 13/08/2017
Leia mais duas crônicas selecionadas na ação O Seu Gol, a Sua História, lançada em julho no site do Itaú Cultural. Para saber mais, clique aqui.
O último homem
de Jonatan Magella da Silva
No Mundial de Futebol com a maior média de gols desde 1970, há uma infinidade de tentos belíssimos. Mas foi o gol de Quintero na vitória da Colômbia por 2 a 1 sobre a Costa do Marfim que fiquei rememorando. Não pelo ato em si, que foi, digamos, comum; um pouco pela seleção da Colômbia, que é a que mais me encantou até aqui.
Mas rememorei o gol tantas e tantas vezes, na verdade, pela origem do lance: uma tentativa frustrada de drible de Serey Dié, quando o jogador marfinense era praticamente o último homem. Coitado do Serey Dié, que ficou estendido no chão, ofegante e triste, enquanto os colombianos bailavam na bandeirinha do escanteio.
Ao assistir ao lance, lembrei-me imediatamente dos meus tempos de zagueiro no time da rua e dos conselhos do treinador: último homem não brinca. Aliás, “último homem” é uma expressão que parece ter uma gama de significados: talvez se refira ao jogador mais recuado em campo; talvez, ao último ser masculino, bruto, instintivo, que deve chutar pra onde quer que o nariz aponte.
Em um futebol no qual os jogadores se enxergam vaidosamente nos telões, o último homem deve ser sério, sujo, enlameado. É o último sobrevivente em um time no qual muitos ficaram pra trás, outros estão cansados e outros são preguiçosos. Não se cansa nem teme batalhas, armadilhas, invasões bárbaras ou contra-ataques de quatro contra um. Ele está lá pra isso.
Enquanto os craques mundo afora fazem caras, bocas e bicos pras câmeras, o último homem só faz cara se for de mau; boca, só se for com dentes trincados; e bico, apenas pro mato.
Aliás, o último homem deveria mesmo dar um “bico pro mato” porque, como sabemos, o jogo é de campeonato. Mas, como qualquer um pode ver, nas arquibancadas das bilionárias e modernas arenas não há mato (nem pobres, a propósito).
Então, pra não perder a rima, o último homem tem que dar um “bico pra linha de fundo, porque o jogo é de Mundial de Futebol”. E que Mundial!
A forma do gládio
de José Armando Nogueira
“Heitor arremete, a brandir o montante afiado.” Isso foi nas planícies de Ílio, no canto homérico. “Aquiles [...] fazendo esvoaçar a plumagem de ouro que Hefesto pusera na forte e brilhante cimeira.” Essa batalha tem outras dimensões. Também com feros embates. E outros calcanhares. Sem corpos desalmados. No chão, guerreiros de caneleiras, como grevas benfeitas. Raspam a relva, distendem virilhas, exibem chagas no rosto, e uma vértebra se parte. Lágrimas desmancham cores bordadas de sorrisos amarelos e lábios verdes. Flamencas danças tropeçam nos próprios passos. Vikings sem naves movem um mar alaranjado. Súditos e súditas de olhos celestes contrastam com o verde da Ílio tropical. O suor reclama dos termômetros quase equatoriais. É um campo vasto, num país continente, de várias geografias, recebendo olhos puxados. Lânguidos sorrisos de traços gregos e cores troianas, numa comunhão pós-Homérica. Eu vejo tudo isso por ser o caminho desse desejo. Não me querem para troféu. Não serei entregue sob chuvas de papel dourado. Minha vingança me faz detentora da chave da glória humana. Efêmera na refrega, eternizada na história, por gerações e contos sem fim. Só recebe o troféu endeusado quem melhor e mais me tocar. Para dentro daquelas balizas, rendadas com anteparo para eternizar, em segundos, o gozo do gol. Sou eu que vazo as metas. Tratada por carinhosas chuteiras. Soladas de travas para evitar o escorregão na fama. Mesmo assim há quem caia, talvez por imperícia. Rolo por um verde matizado de xadrez. Contrastes escuros claros, agora borrifados por espuma branca para evitar burla de espaços regulares. Nas arquibancadas, o mundo se congraça em olas! Ondulante e rítmica confraternização de gestos. Sob o sombrero asteca, o nariz aquilino eslavo, o balanço negro de africanas sendas, sob os lábios carnudos da andina sonhadora, a barriguinha escultural da nativa, ou sob os olhares atônitos de garanhões no cio. Uma babel inteligível. Gestos, cores, maçãs dos rostos embandeiradas nas cores pátrias, parecem feromônios a exalar excitações. E tomem-lhe a minha desdita e glória. Riso e pranto. Emblematicamente, penetro sete vezes na mesma pátria supostamente guardada por um imperador notório. Não, não, estamos em 2014. É só uma homenagem batismal. Eu sou apenas essa esfericidade brazuca. O caminho que leva ao êxtase. Escanteada, no apito final, presente só nas mídias digitais e de papel, resigno-me ao silêncio. Enquanto a chuva de papel cai sobre os teutos. Com aplausos de uma unanimidade não chucra, como não previra o criador do Sobrenatural de Almeida. Phillip Lahn ergue a taça, a Ílio tropical arde a seus pés. O Redentor abraça o Sol. Palas Atena, Apolo, deuses só de poesia, se rendem.