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Memória e História na Eleição do Patrimônio Cultural Edificado

Por que preservamos? Quem possui a prerrogativa de preservar e por quê? E quais são as coisas que devemos preservar para contar nossa história no futuro? São essas e outras questões que o historiador e especialista em patrimônio Lindener Pareto Jr. discute no texto a seguir

Publicado em 24/05/2018

Atualizado às 23:25 de 07/11/2019

Por Lindener Pareto Jr.

Uma pergunta para além da retórica

“Por que preservar?” Tal é a pergunta que todas e todos deveríamos fazer quando pensamos no conceito de preservação do patrimônio cultural. E a razão é mais do que simples: a ideia de patrimônio é inseparável dos conceitos de memória e história que permeiam a sociedade contemporânea. Sua compreensão passa inevitavelmente pelas relações sociais, e respectivos conflitos, que marcaram os estados nacionais do chamado mundo ocidental desde o século XIX. Nossa ideia de patrimônio – termo que designava na Antiguidade os bens de herança que se passavam de pais para filhos – passa pela concepção que se difundiu no século XIX, sobretudo na Europa e América, e que consagrou o termo patrimônio histórico como aquele que identifica os “monumentos históricos” que compõem e legitimam o passado de uma nação. Ora, os monumentos, do latim monere – advertir, lembrar – não são mais a memória viva que se pode tocar, mas o lugar da tradição intacta, imutável, que vem pronta do passado e que exige uma preservação incondicional.

A lógica de preservação do patrimônio cultural edificado no Brasil

Seguindo a lógica da invenção de tradições, ou seja, buscando definir e legitimar a identidade nacional brasileira, o Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado em 1937 sob a ditadura do Estado Novo (1937-1945) – estabeleceu as bases da preservação do patrimônio histórico brasileiro privilegiando os monumentos históricos ou edificações de pedra e cal do período colonial (1500-1822), sobretudo aqueles diretamente relacionados ao barroco como estética e utilidade arquitetônica, como os conjuntos urbanos – casarios e igrejas – de Ouro Preto, Olinda e outras cidades do período colonial.

De fato, a partir de critérios artísticos e históricos excludentes de preservação – não somente por conservar apenas edifícios de pedra e cal, mas principalmente por eleger e julgar como importante apenas uma estética –, o Iphan consagrou a preservação, por meio do tombamento como recurso mais difundido, das edificações de pedra e cal, deixando de lado manifestações de outra estética arquitetônica e expressões culturais hoje chamadas de imateriais, vale dizer, que não passam pela “materialidade” da arquitetura tradicional, como saberes e fazeres da cultura popular.

Somente a partir da década de 1980 os órgãos de preservação locais – municipais e estaduais – e o próprio Iphan sentiram as demandas populares pela preservação de outras estéticas arquitetônicas e das culturas e identidades populares. Desde então, muito se tem feito no intuito de registrar e reconhecer como patrimônio histórico e cultural as múltiplas manifestações culturais da sociedade brasileira.

O patrimônio como eleição

Como evidenciado acima, a ideia de patrimônio, seja ele material ou imaterial, depende sempre da lógica das disputas e dos conflitos que envolvem a escolha de uma memória específica, de uma “lembrança” que faça sentido para um grupo disputando poderes numa instituição ou por uma comunidade que queira eleger seus modos de representar e viver a vida cotidiana. Com isso não se quer dizer que devemos ignorar as instituições de preservação; pelo contrário, devemos incitá-las a trabalhar em prol das demandas da população, da diversificação e da democratização de acesso aos bens culturais.

Por fim, vale retomar a questão: por que preservar? As respostas são muitas. Porque, ao preservar, a gente inscreve a memória vivida no espaço e dá sentido para as experiências vividas historicamente.

Porque já faz parte de uma tradição e conforta vidas e esperanças em espaços urbanos e rurais em constante disputa e transformação. Poderíamos até cair no outro extremo e nos perguntar se boa parte dos edifícios preservados em nossas cidades representam de fato a vontade de todos. Patrimônio não é neutro, não é invenção “natural” que sempre tenha existido. Ele pode ser até mesmo opressor, dependendo das memórias de violência e barbárie que ele elege e carrega. Ele faz parte de nossas disputas pelo direito à cidade, à memória de todos e à história que possa contemplar as muitas narrativas da sociedade.

Ao mesmo tempo, diante de tantas demandas, é impossível e temerário pensar na patrimonialização ou preservação de tudo. Lembremos aqui do clássico conto de Jorge Luis Borges, “Funes, o Memorioso”. Nele o autor narra a vida de um sujeito que não esquecia de nada, lembrava absolutamente de tudo e que, por isso, era incapaz de discernir, incapaz de pensar: “Eu sozinho tenho mais lembranças que terão tido todos os homens desde que o mundo é mundo. E também: Meu sonho é como a vigília de vocês. Minha memória, senhor, é como um monte de lixo”. Funes era incapaz de distrair-se do mundo, de dormir. A menos importante das lembranças era como uma tortura insuportável. Por fim, diz o narrador:

Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não fosse muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo entulhado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.

Em suma, temos sido capazes de lembrar – ou o oposto, esquecer – em demasia, mas estamos de fato refletindo sobre tal processo? Analisar as representações da memória que envolvem a ideia de patrimônio é um começo de conversa.


Lindener Pareto Jr. é historiador, doutor em história e fundamentos da arquitetura e do urbanismo pela FAU/USP, além de docente da Faculdade de História da PUC/Campinas.

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