No quarto texto para o site do Itaú Cultural, as críticas de teatro Ivana Moura e Pollyanna Diniz falam sobre os desejos de futuro nas mentes que produzem artes cênicas
Publicado em 14/06/2021
Atualizado às 11:18 de 27/12/2021
Os futuros sussurram coisas. Se apostamos na possibilidade de que o futuro que virá se comunica conosco por enigmas, ou desenha quadros percebidos parcialmente, é porque ele não desaba pronto. Vai sendo construído enquanto se anuncia a si mesmo no horizonte, em avisos que podem ter baixa intensidade ou ser escancarados. No entanto, o regime colonial-racializante-capitalístico, financeirizado, neoliberal e neoconservador, como nomeia a psicanalista Suely Rolnik, aterroriza o amanhã com requintes de crueldade.
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O desejo ergue-se em defesa da vida. Artistas desejantes de futuro ousam experimentar outros modos de existência. Estão geralmente em combate no campo das micropolíticas, que, como explicita Paul B. Preciado no prólogo do livro Esferas da insurreição, de Suely Rolnik, “é o nome que Guattari deu, nos anos 1960, àqueles âmbitos que, por serem considerados relativos à vida privada no modo de subjetivação dominante, ficaram excluídos da ação reflexiva e militante nas políticas da esquerda tradicional: a sexualidade, a família, os afetos, o cuidado, o corpo, o íntimo”.
Remexendo nas inquietações sobre o porvir, pedimos a alguns desses artistas desejantes que participaram do programa Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, do Cena agora, que refletissem sobre quereres de futuro. A pergunta sorrateiramente simples carrega nuances a partir de conceitos de futuro (ou seja, de tempo) e de desejos. Mas o nosso anseio com a provocação da “futurologia” é caminhar um pouco mais juntos, compartilhando os desassossegos da hora, numa tentativa de emaranhar vida e arte, enquanto podemos atuar com nossos corpos vivos. E, quem sabe, perceber os sinais, as pistas que circulam incessantemente.
Como a prática artística afeta as nossas vidas, de outros, de muitos? A conjuntura brasileira é altamente desafiadora e paralisante. Mas ficar inerte, aceitar as barbáries ou desistir não são, definitivamente, opções aceitáveis. Para encarar e enfrentar o futuro que se apresenta, precisamos analisar até o osso os efeitos do capital, que causou, por exemplo, a crise climática que ameaça a nossa casa, o planeta Terra.
O futuro pós-pandemia
O diretor Márcio Marciano, do Coletivo de Teatro Alfenim, da Paraíba, é categórico ao afirmar que “é impossível dissociar a catástrofe da pandemia de uma catástrofe maior e mais duradoura, a da reprodução do capital, com sua lógica sistemática de espoliação do trabalho humano e de destruição dos recursos naturais”. Para o encenador, considerar “o futuro pós-pandemia implica pensar o combate e a destruição do metabolismo do capital”. Um dos caminhos nesse processo seria “reconquistar para a arte e através dela própria seu valor de uso, seu caráter formativo e pedagógico”. E continua: “Vivemos um momento histórico em que a presunção de nossas certezas agoniza em meio à gestação de um futuro que desconhecemos. Essa deve ser a matéria bruta de nossa investigação artística”.
Em Desertores, dramaturgia escrita por Marciano para o Alfenim a partir de O declínio do egoísta Johann Fatzer, de Bertolt Brecht, há um trecho que diz muito sobre os sentimentos que nos tomam: “Antigamente, os espíritos vinham do passado / Agora, vêm do futuro / Lastimosos, suplicantes, paralisantes e intangíveis / Feitos somente da matéria de seu próprio espírito / Feitos de medo, antes de tudo / O medo indica o que está por vir”.
O desamparo diante do medo da morte, da extinção, da fome e dos recursos escassos acentua as características de um sistema que comprime as pessoas ao limite, sem dó. Nesta pandemia, principalmente para as mulheres, que assumiram com mais frequência as cargas de trabalho relacionadas ao cotidiano da casa, à dimensão do cuidar, seja dos filhos ou dos parentes mais idosos, não há divisão entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho.
Arte, a parceira resistente no isolamento social
Para os artistas, casa virou espaço de produção, ensaio, gravação, apresentação ao vivo. Diante da situação de amedrontamento, tudo se tornou trabalho e esforço de sustento. Na desvalia do cenário, artistas e agentes culturais sofreram por conta da negligência e foram alvos de perseguição, de chacota, de desinvestimento. Fabiano Barros, da Cia. de Artes Fiasco, de Rondônia, destaca essa incoerência no quesito importância versus valorização: “A arte mostrou potência sendo a principal parceira de muitos no isolamento social, mas sentimos a fragilidade da falta de amparo do poder público, que após diversas reivindicações disponibiliza uma ação mascarada de política eficiente”. E posiciona seu grupo: “Minha arte é feita em um lugar que, por sua natureza, é resistência. Que diariamente luta para existir e combater o preconceito, o estereótipo e a invisibilidade. É um ponto de vista de um lugar que, ao mesmo tempo que grita socorro, se acostumou com os descasos dos poderes”.
Natural de Cacimba de Dentro, cidade do interior da Paraíba, o artista Zé Wendell, morador do Rio de Janeiro, “dorme e acorda vislumbrando possibilidades criativas”. Ao longo dos últimos meses, as inscrições em editais públicos se tornaram tarefa ainda mais rotineira. A missão de persistir por meio do trabalho, de um convite para um projeto, uma apresentação, um festival, assume contornos definidores de um futuro próximo. “Continuarei buscando oportunidades de trabalho que me possibilitem criar novas realidades, provocar, fazer rir, me reinventar, refletir o mundo e transformar o outro.” E cita a cantora potiguar Juliana Linhares, que lançou o álbum Nordeste ficção, em sua música “Balanceiro”: “Eu não posso mudar o mundo / mas eu balanço”.
Para Maicyra Leão, artista sergipana que mora em Berlim, na Alemanha, um dos desejos de futuro é encontrar modos de produção que garantam sobrevivência, mas respeitem o tempo próprio da imaginação e da criação. “Gostaria que os artistas, as pessoas em geral, pudessem se dedicar a coisas que tenham mais valor simbólico para elas, de modo que o fato de você colocar isso no mundo também ganhe alcances que não são superficiais”, aspira. “Nesta pandemia, reforçamos o valor do cuidado com o outro, consigo mesmo, com a sociedade, [o valor] do que a gente faz com cuidado. Para mim, esse valor se apresenta como uma necessidade de futuro.”
Ancestralidade
“Il futuro ha un cuore antico” [o futuro tem um coração antigo] é um inspirado verso do poeta e pintor italiano Carlo Levi, que o ator e diretor Dinho Lima Flor, da Cia. do Tijolo, de São Paulo, convoca para a contradança nos seus exercícios de pensamento. “Para ter desejo desse futuro, preciso voltar ao coração antigo e assimilar este coração presente.” Compreender o passado para atuar no presente. Na avaliação do artista, ainda vivemos o tempo do açoite – não de todos, é lógico, como nunca foi.
“O presente, para mim, é o futuro, sou eu construindo o futuro. Mas, para isso, devo me entender com esse tempo do passado, dos meus ancestrais; entender o que é este país.” Se destrinchar o Brasil é uma tarefa hercúlea, dada a sua complexidade, as evidências da injustiça, da incompreensão de um povo pelas elites e da escravidão estão na nossa cara. “Não quero que o futuro tenha essas tragédias.”
A ancestralidade, assim como a noção de um futuro que é presente, também está na percepção da artivista negra em movimento Verônica Bonfim, do Pandêmica Coletivo Temporário de Criação, formado por artistas de vários lugares do Brasil. “O futuro é agora e todas as respostas para o novo normal, daqui em diante, estão no passado, com as populações originárias em África e aqui.” Contra as vozes autoritárias e populistas, as armas, na visão da artista baiana, são “as tecnologias dos saberes ancestrais”, que não são novidade para uma parcela da população brasileira, “desde a colonização e, antes disso, desde o sequestro e a escravização dos povos africanos para as Américas”. A sua arte dialoga com o pensamento de que o futuro é ancestral e coletivo, e “a nossa sobrevivência estará na capacidade de nos compreendermos dentro desse movimento”.
No caminho de resgate da história e da tessitura de tramas de futuro, Márcio Meirelles, diretor teatral, cenógrafo e figurinista da Companhia Teatro dos Novos, da Bahia, adverte que tem “muito cuidado para pisar em terreno firme sem machucar a terra que tem tanta história”. Filho de Xangô, ele diz: “Eu me preparo para o que vem contando as histórias que conheço desta terra e deste tempo. Não é muito mais do que isso. Contando histórias, reinvento o mundo e construo possibilidades de um tempo melhor, numa terra melhor”, expondo o seu exercício costumeiro de transformação da realidade. “Por exemplo, agora escrevo isto que vai ser lido por alguém, e prezo para que quem leia ganhe, ao ler, meu olhar cheio.”
O Grupo Teatral Boca de Cena, de Sergipe, também acredita no caminho da memória: “A resistência de uma memória não apagada. O estopim de uma revolução. Essa é a nossa gana, a nossa missão. Recriar existências varridas pelos deslimites da ambição, sem perder de vista quem na verdade somos”, diz o ator e produtor Rogério Alves. Inspirado no que a escritora Conceição Evaristo chama de “escrevivência” – a escrita permeada pela experiência, pelo cotidiano, pela memória e por sua história como mulher negra –, o grupo criou Remundados, que também virou sua “palavra verbo-ação”, intenção de reconfiguração de modos de vida no tempo que é presente, porque “o excesso de futurança faz mal”, acredita Rogério.
Tempo de respiro
Quando houver passado o período mais crítico da pandemia, a sensação será de que teremos uma nova chance? De que existirá tempo para imaginar alternativas? Ou, ao contrário, vamos nos perceber atrasados, como se não déssemos conta da vida, correndo sem respiro atrás da produtividade insana do regime “capitalístico”?
O trabalho mais recente da artista cearense Jéssica Teixeira, chamado Lugar de falta, diz sobre as ausências e os vazios que vamos tentando preencher sem ao menos parar para compreender quais coisas estamos tentando substituir, encaixar nos buracos, soterrando os sentidos. Para a artista, “falta” também significa movimento, “nem bom, nem ruim”, mas a capacidade de olhar para si mesma e para os outros e tentar entender o que se passa.
Nessa obra que é corpo-discurso-reação, a meta cristã do futuro no paraíso, uma graça a ser recebida, é desafiada. No paraíso imaginado por Jéssica, as pessoas são estranhas e carregam faltas, porque quem se acha inteiro “é meio coisado”, uma expressão que traduz a dificuldade de definição, a ausência de entusiasmo, a chatice de quem não enxerga os próprios desejos, entendendo desejo como afirmação de vida.
Da urgência de descolonizar corpos e corpas ao movimento de autopercepção, quando questionada sobre quais são os seus anseios de futuro, Jéssica explicita: “Desejo muito que a simplicidade seja uma virtude presente nos modos de vida. Desejo muito, também, a derrubada dos tabus e dos mistérios que pairam sobre os nossos corpos. Desejo que as pessoas falem mais sobre os seus desejos e sonhos e acreditem que são capazes de fazer acontecer”.
A liberdade como princípio
Os artistas da Cia. Pão Doce, de Mossoró, no Rio Grande do Norte, que construíram coletivamente uma resposta à pergunta sobre futuro, nos trouxeram a liberdade como princípio. E ambições que, nas circunstâncias que vivemos no Brasil, alguns nomeiam delírios. Preferimos chamar de propósitos. “Queremos ser livres do medo de uma futura ditadura e de todo o sofrimento e censura. Queremos ser livres de todo tipo e forma de preconceito. Queremos a liberdade de poder ter, fazer e escolher o básico: comida na mesa, estudo, trabalho, moradia e saúde. A liberdade de criar, de ampliar ações culturais, de ter constância nas produções.” O grupo já articula outras práticas de existência, nas bordas de um Brasil que é gigantesco, plural, mas desigual e injusto, reafirmando a intenção de “desenvolver projetos em localidades com difícil acesso a produções culturais, longe dos grandes centros, em escolas das periferias”.
Lançamos como disparador para os artistas cruzarem o futuro um trecho do livro O futuro começa agora: da pandemia à utopia, do português Boaventura de Souza Santos: “O novo século começa agora, em 2020, com a pandemia, aconteça o que acontecer. E, no entanto, um começo diferente dos anteriores. Se for apenas o começo de um século de pandemia intermitente, haverá nele algo de fúnebre e crepuscular, o início de um fim. Por outro lado, pode ser também o começo de uma nova época, de um novo modelo civilizacional”.
A experiência de finitude com a crise imunológica comum nos desestabiliza. Talvez essa marcha fúnebre da história, principalmente aqui no Brasil, diante do crime da omissão, de deixar morrer aos milhares, nos desperte para o que é essencial. Responsabilidade no mundo compartilhado, cuidado com o outro, renovar a maneira como lidamos com a natureza e com nós mesmos, entendendo os efeitos tóxicos do atual sistema na existência única de cada criatura, mas também no campo coletivo. Boaventura aponta para um novo modelo civilizacional. Um futuro que não sabemos quando e se chegará. Mas uma realidade mais digna e humana para todos os seres viventes é o nosso desejo. Liberdade, liberdade! Respeito à Terra e à ancestralidade. Arte e cultura. Viva o teatro! Vacina para todos!