Vítima da covid-19, o escritor carioca Sérgio Sant’Anna (1941-2020) completaria 80 anos em 30 de outubro de 2021
Publicado em 30/10/2021
Atualizado às 11:36 de 28/10/2021
por Gilberto Figueiredo Martins
“[...] a vida também pode ser perfeita. Entre as coisas que me alegravam, ironicamente, estava o fato de saber que este depoimento só será lido por vocês quando eu não estiver mais aqui. Mas quem sabe não estarei embarcando numa nova aventura? Desencarnar me dava uma espécie de euforia e havia ainda a possibilidade de eu encarnar de novo. Mas também o nada absoluto me seduz.
[...] E era fundamental para mim contar a minha trajetória, que entrego a vocês, meus pares, certo de que ela vos enriquecerá de algum modo. Escrevê-la é como viver duplamente [...]. Viver mais do que duplamente, se a teoria de Nietzsche e dos astrônomos estiver correta. Mas, por via das dúvidas, garanto aqui mesmo essa duplicidade.
Para terminar, não posso conter o júbilo, do lugar em que me encontro – nem que sejam o túmulo e as minhas cinzas –, de saber que estas palavras terão a sua vida própria, pois os autorizo a mostrá-las onde quiserem, mesmo fora dos limites desta confraria.”
Com essas palavras, o escritor carioca Sérgio Sant’Anna (1941-2020) – que completaria 80 anos em 30 de outubro de 2021 – encerra sua última (e inconclusa) novela, “Carta marcada”, publicada postumamente no volume A dama de branco, lançado pela editora Companhia das Letras meses depois de sua morte, em decorrência da covid-19. Nessa missiva, o narrador Júlio dirige-se a seus companheiros de copo e de “confraria”, a saber, os “pares” que frequentam com ele a irmandade terapêutica dos Alcoólicos Anônimos (AA).
Como é recorrente nas narrativas do autor, o propósito anunciado da escrita é registrar e apresentar sumariamente os fatos mais importantes da trajetória do protagonista, “como se tudo se passasse no teatro, para onde saem e de onde voltam intermitentemente os personagens-atores”; entretanto, como também é costumeiro nos desdobramentos do projeto estético investigativo-experimental de Sérgio, tal intento falha, desvia-se ou simplesmente fracassa. Assim, a tarefa concretizada assume uma das tantas formas de (ir)realização do impossível que constituem sua obra.
Contudo, aguardando que se confirmem as cláusulas anunciadas do contrato, o leitor prossegue na leitura, certo de que a narrativa logo assumirá a “estilização” afim à hibridez de gêneros literários, já levada a termo pelo escritor em Um romance de geração (teatro-ficção), de 1980, e A tragédia brasileira (romance-teatro), de 1987 – esse último efetivamente encenado pela diretora e amiga Bia Lessa, sob o título Ensaio No 1, antes mesmo do lançamento editorial.[1] Engana-se: tomado pelo autoencantamento delirante de possíveis memórias e obsedantes desejos, Júlio acaba por “reproduzir na íntegra o fluxo dos seus delírios”, ao insistir no relato algo repetitivo de suas aventuras eróticas e investidas afetivas, igualmente degeneradas, pelo passar do tempo, em ruínas do que prometiam ser quando começaram...
E a infeliz coincidência de a novela vir a público tão somente após a morte do autor – como o queria o enunciador da carta – contribui para ratificar definitivamente outro traço das constantes formais e temáticas de Sérgio Sant’Anna: o embaralhamento entre as dimensões ficcional e autobiográfica, resultando na instigante e sempre revigorada reflexão acerca da representação e da formalização artística da experiência, com especial atenção para o lugar do intelectual na periférica vida cultural brasileira.[2]
Para completar a trágica ironia da confluência vida-obra, no conto que dá título à coletânea lançada em 2021, o narrador em primeira pessoa, com 79 anos, aproveita a atmosfera menos poluída resultante das restrições de circulação impostas pela pandemia (“este tempo da peste”) e se põe a contemplar, com mais nitidez, da sacada de seu apartamento, os movimentos silenciosos de uma bela e “singular” “dama de branco” que, sem máscara de proteção (!), “circula pelo estacionamento a céu aberto do edifício, sempre às três da manhã”. Com fixação de voyeur e “imaginação solta”, fumando um baseado, ele a observa e deseja, pondo-se ainda a pensar na “grandeza incalculável” do Universo e a devanear sobre a (in)existência de um Deus “indiferente à sorte humana”. E acaba por concluir, de modo visionário: “Às vezes, penso que a dama de branco é a própria morte. Sei que isso é um modo de prendê-la e logo me penitencio e sei que em outro momento pensarei outra coisa. A morte não passa de uma obsessão minha”.
Um novo livro recente, igualmente póstumo e já fundamental, organizado por André Nigri e Gustavo Pacheco para a editora pernambucana Cepe – O conto não existe (2021) –, reúne ensaios autorais, resenhas e entrevistas concedidas pelo escritor, entre 1969 e 2020, a diversos interlocutores de diferentes veículos de imprensa. Naqueles, os quais compõem a segunda parte do volume, Sant’Anna faz um balanço dos contos brasileiros a partir da década de 1960, anos “loucos, selvagens e vertiginosos”, quando se lançou como escritor, em meio à “rebelião dos comportamentos” e “ao som das guitarras elétricas”, momento em que “o bandido virou mocinho e vice-versa” e surgiram a Bossa e o Cinema novos. No período, os “consumidores de livros” gradativamente superaram a “era pré-industrial” da literatura, representada por escritores como José Mauro de Vasconcelos, já chegavam à produção latino-americana e, logo, viriam a “descobrir o Brasil”, reconhecendo a renovação empreendida por Guimarães Rosa e Clarice Lispector (autora a quem Sérgio dedicava justa admiração, homenageando-a, por exemplo, no texto “A bruxa”) e continuada pelo “despojamento” lacônico-telegráfico de Dalton Trevisan (“o maior – e menor – contista do país”)[3] e pelo “olhar extremamente penetrante” com que efetivava suas “inovações formais” nada “estéreis” o “novo rei” do conto: Rubem Fonseca (também falecido em 2020), com sua “literatura moderna e vigorosa” que elevava a palavra escrita “a um novo potencial”, abrindo-lhe “um horizonte imenso”.
O conto não existe
Quanto à provocativa declaração com que os organizadores intitulam a obra, é citação proveniente de um depoimento de Sant’Anna para o Suplemento literário do Minas Gerais, concedido após a publicação do seu segundo livro, Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer), de 1973: “Pois alguém mais observador poderá perceber nele a procura e a passagem para um tipo de texto mais livre, que é o que me interessa atualmente. Estes críticos que ainda produzem teorizações do tipo ‘o conto é isso’, ‘o conto é aquilo’, não estão com nada. O conto não existe”.
Anunciada ainda no início da produção literária de Sérgio, a negativa estimulante e desafiadora acerca do estatuto de seus “textos de ficção” – postos na cambiante “fronteira entre o conto e aquilo que não o é mais” – viria a se confirmar como linha de força de sua produtiva pesquisa com e sobre a escrita ficcional (“Escrever é encontrar uma linguagem”), a qual não poucas vezes se viu radicalmente avançando limites rumo aos recursos expressivos do teatro, do cinema, das artes visuais[4] e do ensaio poético ou crítico-filosófico (incluindo sua paródia), até em obras mais recentes, como O homem-mulher (2014) – que traz “O conto maldito e o conto benfazejo” – e O conto zero e outras histórias (2016) –, no qual se inclui a homenagem a Clarice –, alçando o problema do hibridismo e da indefinição de gênero (não só literário) ao patamar abrangente de motivo, tema e título de narrativas sempre marcadas pela invenção.
Poeta bissexto, buscando expandir suas investigações criativas, Sérgio Sant’Anna lançou em 1984 o livro Junk-Box, com poemas musicados e levados à cena pelo grupo Tao e Qual, de que era integrante o seu filho, e também escritor, André Sant’Anna. A irreverência e a visão crítica que possuía do próprio ofício estão lapidarmente inscritas no último texto da coletânea:
Imortalidade
(epitáfio)
Minha carne
aos vermes servem
porém estátua
em praça cívica
a glória minha
é um holograma
em cujos louros
cagam os pombos.
Certamente, serviria de verso-remate ao poema a frase derradeira com que Júlio termina sua “Carta marcada”: “Isso é tudo”.
* Os trechos citados nos rodapés foram extraídos do volume recém-lançado O conto não existe, que reúne textos não ficcionais de Sérgio Sant’Anna.
Gilberto Figueiredo Martins é professor de literatura na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Assis e autor do livro Estátuas invisíveis – experiências do espaço público na ficção de Clarice Lispector (Edusp/Nankin, 2010).
[1] “Reconheço que o primeiro ato de A tragédia brasileira é bem contaminado por Nelson Rodrigues. Escrevi, em A tragédia brasileira, um romance-teatro porque estava na época envolvido com pessoas de teatro a quem admiro, como é o caso de Antunes Filho. Vi os ensaios quando Antunes Filho estava montando três peças de Nelson. Então, me contaminei pela encenação de Antunes. Mas também sou admirador de Nelson. A obra que ele deixou é mais importante do que as besteiras que disse. Nelson Rodrigues participou de uma justificação da ditadura, o que acho inconcebível. Sua obra, no entanto, não sofreu nada. De qualquer maneira, como pessoa, ele vacilou naquele momento.” (1988)*
[2] “Como sou incapaz, talvez, de escrever um romance realista, acabei criando uma ficção que é sempre sobre a representação. É como se o mundo, para mim, já surgisse filtrado pela representação.” (1997)
[3] “Ultimamente, eu leio todos os livros do Dalton Trevisan com uma admiração profunda. Acho que é um dos contistas mais importantes do mundo. Aquele aparente anacronismo dele é, na verdade, um charme. E, em termos de linguagem, não conheço ninguém no mundo que faça esse tipo de conto. Mas é um caminho fechado, é impossível tentar fazer igual. O problema dos grandes mestres é que a gente tem que ler e esquecer na hora de escrever. [...] Se leio um livro do Rubem Fonseca, já fica problemático escrever um diálogo depois.” (1997)
[4] “Uma influência que percebo nitidamente e admito é a do teatro, da encenação teatral, que me fascina, e das artes plásticas. Tudo o que vejo representado plasticamente, ou cenicamente, é uma influência que posso assimilar sem cair na do outro. [...] Sofri uma influência muito forte do Godard, pois ele é o tipo do cara que ensina a você liberdade. O Godard se permite, no cinema, misturar ensaio, personagens reais, discussões de todo tipo. Eu também faço isso, quando quero, no meu trabalho.” (1997)