A coluna Sankofas de outubro de 2017 é assinada, excepcionalmente, apenas por Nayra Lays
Publicado em 11/10/2017
Atualizado às 18:57 de 09/02/2023
Por Nayra Lays e Alexandre Ribeiro*
Em junho de 2017, lancei um EP intitulado ORÍ. Um presente para mim mesma, em comemoração dos meus 20 anos de existência e reexistência neste mundo. Uso esse termo –reexistência – por estar aprendendo a reconhecer o que o processo de objetificação de corpos negros faz parecer difícil de admitir: sou humana.
Passar por crises intensas de solidão e medo, mesmo quando tudo está aparentemente em ordem, não é natural. Mas aprendemos a conviver com elas. Tomar consciência do que significa ser mulher preta passa por saber que o processo de existir nunca será linear, justamente por ser um processo e que, para nós, é ainda mais difícil. A vida nos exige sabedoria que vem de outros tempos, mas a descoberta reconfortante é que ela se manifesta de muitas formas, o tempo todo, e é o que ainda nos faz emergir, renascer depois de tempos tempestuosos. Para mim, a música tem sido um dos elos mais fortes com forças ancestrais, para manter minha energia criativa viva.
Em um dos sons do EP, chamado Fartura de Vida, eu canto que “quero viver, e não só sobreviver”. De fato, crescer na quebrada sendo menina, filha de mãe solo, jovem e preta, é um teste de sobrevivência. Hoje tenho a consciência disso e ainda sofro, mas não sem questionar as razões, e pensar estratégias de cuidado do nosso interior, que se renovam cada vez que recuamos para cuidar das feridas.
Conseguir o mínimo de segurança para falar em público e nos impor. Dizer não. Pensar em um planejamento de vida. Ter acesso a livros escritos por mulheres como nós. Nos enxergar. Foi a música, especialmente o rap cantado por mulheres pretas, que abriu meus ouvidos, minha mente e meu coração para buscar, enxergar e abraçar possibilidades novas, futuristas, eu diria.
O novo trabalho do Rimas e Melodias, grupo de RAP e R&B composto só de mulheres, foi um novo chacoalhão, um fôlego que chegou até mim em mais um momento necessário, para relembrar: “É sobre lutar, sobre conquistar, sobre fazer valer…”. E por muito tempo será.
Nós tivemos a chance de trocar uma ideia com Tássia Reis, Drik Barbosa, Alt Niss, Tatiana Bispo, Stefanie, Mayra Maldjian e Karol de Souza sobre como a música tem contribuído nos processos de cura delas também.
O disco, com todas as suas camadas e vozes, apresenta uma experiência forte de detalhes e percepções. Como foi a chegada a esse estágio? Houve muita troca de opinião?
Sim. No início do processo a gente se reuniu para conversar sobre todo o conceito do disco. Discutimos tudo nos mínimos detalhes e isso foi acontecendo também durante as gravações. Todo mundo teve voz ativa e a gente escutava umas às outras. Você consegue ver um pouco de cada uma no disco. Também escutamos bastante os produtores, que tiveram tanto cuidado e preocupação quanto nós para tudo sair do jeito que a gente queria.
Após algumas audições, conseguimos notar rimas que aparecem como trocas de ideias e desabafos entre vocês. Lançar o disco foi um processo de cura?
Não digo cura, mas posso dizer que foi um desabafo. São letras fortes e nós mesmas que escrevemos, então são experiências que já passamos ou vimos alguém passar. Acontece também da identificação pela letra da outra. Nada do que está sendo dito tem a reprovação de alguém. Escuto trechos que não são meus, mas me emociono, quero cantar junto porque também me representam.
Em um contexto tão conturbado, como ajudar a construir narrativas de autocuidado, especialmente entre mulheres pretas?
Acredito que nossa música traduz muitas vezes o que passamos, o que sofremos, mas também o que almejamos. Pensando nisso, quando escrevemos defendendo nosso direito de existir é como um grito nosso por esse autocuidado. Acho que cada uma de nós precisa encontrar em si uma força. É uma forma de se cultivar e juntas nós celebramos isso também, o que nos fortalece.
Qual é o papel do rap que vocês fazem para as construções de vida de outras pessoas?
Em cada música que compomos existe a nossa verdade, o que acreditamos, o que sentimos e como reagimos às vivências e sentimentos. Muitas pessoas se identificam e recebem positivamente a mensagem. A música tem esse poder de fazer pensar no que está sendo dito, abrir a mente e, se você quiser, levar aquela mensagem para a vida. Nós, que fazemos música, entendemos que da mesma forma que a música nos faz bem, inspira e já nos salvou de alguma forma uma música feita por nós pode inspirar e motivar.
Há alguma música que as ajuda nos dias difíceis? Gostaríamos da indicação de cada uma de vocês.
Drik Barbosa:
"Enjoy Ya Self" (Slakah The Beatchild)
"Equilíbrio" (Kamau)
Tatiana Bispo:
"Put Your Records on" (Corinne Bailey Rae)
"Passou" (Djavan)
Alt Niss:
"Bag Lady" (Erykah Badu)
"Vida Loka Parte 2" (Racionais Mcs)
Stefanie:
"Em Teus Braços" (Laura Souguellis)
E qualquer uma do The Foreign Exchange
Tassia:
"Sozinho" (Metá Metá)
Mayra Maldjian:
"Sonâmbulo" (Céu)
E qualquer uma da Kelela
Karol de Souza:
"Quadro da Vida" (Brício)
E qualquer uma de Bob Marley
Foi Conceição Evaristo, citada por Djamila Ribeiro em um dos sons do novo álbum das minas, quem disse: "Nossa voz estilhaça a máscara do silêncio". Que nossas vozes, em prosa, poesia, rima e melodia, sigam mostrando novas possibilidades de fartura de vida às que virão.
Obrigada, mulheres negras.
*A coluna Sankofas é assinada em conjunto, mas o texto de outubro excepcionalmente foi escrito apenas por Nayra Lays. Alexandre Ribeiro auxiliou na entrevista e na edição do texto.