Paulo Augusto Franco de Alcântara conta a história de uma mulher que decide “arquivar a si mesma” em todos os degraus de escada que já subira
Publicado em 21/06/2022
Atualizado às 16:42 de 16/08/2022
Narrativas é a sétima série produzida aqui no site que destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada publicação, um escritor é convidado a criar um texto literário inspirado em uma obra do acervo. Nesta edição, escreve Paulo Augusto Franco de Alcântara.
Anna Bella Geiger
Passagens I, 1974
vídeo, p&b, 10'
Acervo Itaú Cultural
Oitavo andar
Ela teve uma súbita ideia. Como seria se tivesse contado todos os degraus de escadas que subira até então? Em vez de alguns álbuns de fotografias, arquivaria a si mesma em escadarias. Ideia inusitada, mas não tão estranha para quem, desde que se mudara para o oitavo andar de um prédio na cidade, as horas se parecem com degraus a serem vencidos contra o peso do corpo, e o tempo, uma inclinação, é marcha repetitiva que se conta e se acumula, incessante, em compasso de máquina feito o relógio da fábrica, de baixo para cima, do início ao fim. E, depois, tudo de novo.
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Ela sobe degrau-por-degrau com a consciência ali cravada sem saber se deseja, por fim, chegar em casa. O toque cadenciado do salto no assoalho se mistura aos sons da rua. Vozes, motores, buzinas e assovios-assédios gravitam e pesam sobre os seus passos. Ela passa pelas escadas como se cada lance fosse uma página em branco onde seu corpo se inscreve. Os degraus são as linhas que preenche. O Jornal do Brasil noticiou mais um corpo de mulher. “Uma preta encontrada às margens da rodovia Presidente Dutra”. Lá diz que “ninguém esteve no necrotério de Nova Iguaçu para localizar alguma mulher com as características da morta”. No outro dia, lê-se: “Jovem encontrada morta num apartamento no bairro de Copacabana”. Todas elas sem nome que é para que nenhum leitor se assuste muito.
Quando menina, na roça, ouvia da avó que a vida era morro escorrido ou pirambeira. Se parasse abobada cairia, e que na vida, feito uma lavoura de café, só se sobe para cima. A velha dizia isso entre dentes, no bafo do fogão contra a manhã fria, enquanto requentava o café para o homem. Isso a faz recordar da primeira vez que usara um par de sapatos de salto como os de agora. Apesar de bem mais leves do que as habituais botinas da infância, o peso no andar continua.
Agora, mulher feita na cidade, casada e só, repete, diante daquelas escadas, além das botinas, os joelhos pontudos da avó herdados pela mãe quem, por sua vez, lhe dera o nome que ela nunca aceitara de bom grado, talvez, por ser muito curto e com a aparência de estar faltando algum pedaço. O som dos passos fica cada vez mais regular. Ela, então, pensa que o tempo poderia ser medido pelas gordas fatias que o chão vai roendo em seus sapatos. Quanto tempo falta para ser um corpo?
Algumas dezenas de degraus depois, o peso se instaura convicto às pernas. O presente pesa sobre o passado empurrando-lhe para baixo. Ouve um carro de polícia passar. De dentro de um dos apartamentos, “a voz do Brasil” lembra o recente incêndio no Edifício Joelma, na cidade de São Paulo. Num contragolpe, ela olha, pela primeira vez, para baixo. Volta a atenção para o térreo. Os frutos que caem na lavoura, não deveriam cair para cima? Ela é instigada a descer. Mas isso, Ida ainda não sabe fazer.
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Paulo Augusto Franco de Alcântara é antropólogo, pesquisador de pós-doutorado vinculado ao Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), onde desenvolve uma pesquisa sobre os diários pessoais do escritor Raymundo Faoro.
Anna Bella Geiger é artista visual. Produz esculturas, pintoras, gravuras, desenhos e obras de teor intermídia. Também é professora. Na década de 1960, sua obra inicia em uma vertente abstrata, passando depois ao estudo figurativo do corpo como microcosmo. Nos anos 1970, experimenta com múltiplas mídias – fotografia, serigrafia, xerox, cartão-postal, vídeo, entre outras. A partir de então, seu trabalho lida com temas como identidade nacional e a posição do artista no Brasil. Nas décadas de 1980 e 1990, atualiza práticas da sua produção e revê a história da pintura. Conheça mais sobre a sua trajetória na Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira.