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Nas dobras dos pensamentos indígenas, palavras de engravidar o tempo

O que dizer depois de habitar e deixar-me habitar pelo Mekukradjá – Círculo de Saberes? O que dizer depois de conviver com pensadores e pensadoras indígenas que fizeram girar com força e multiplicidade esta roda de sabedoria ancestral?

Publicado em 13/11/2018

Atualizado às 14:40 de 13/11/2018

por Alik Wunder

O que dizer depois de habitar e deixar-me habitar pelo Mekukradjá – Círculo de Saberes? O que dizer depois de conviver com pensadores e pensadoras indígenas que fizeram girar com força e multiplicidade esta roda de sabedoria ancestral? Suas palavras e seus cantos ampliaram os nossos horizontes conceituais, éticos e estéticos. Em cada fala, uma forma de vida própria, uma humanidade diversa gestada desde dentro da cosmovisão de um povo. Em cada círculo de conversa, os pensamentos ganharam vida pulsante, variante e fértil. As palavras engravidaram o tempo, uma outra imagem de tempo. Durante o Mekukradjá, coloquei-me em estado de escuta, deixando-me atravessar pelos cantos, palavras, gestos e imagens que produziam dobras nos meus modos de pensar. Os nossos pensamentos podem ser imaginados como uma superfície lisa e plana que, no encontro com outros, pode dobrar-se. É desde esse precioso entre-lugar que escrevo, espaço que se cria no encontro entre as lógicas do pensamento ocidental, das quais compartilho como professora e pesquisadora não indígena, e as lógicas de pensamento dos distintos povos.

Reuniram-se em roda de canto e conversa pessoas de quinze etnias diferentes, de diversos estados brasileiros, de várias gerações, com variadas experiências de vida e formação: pajés, lideranças, anciãos, anciãs, jovens, escritores, escritoras, artistas, cineastas, educadores, educadoras, linguistas, antropólogos... Todos os convidados e convidadas eram indígenas. E, mais que isso, cada encontro foi vivido e ritualizado dentro das lógicas e sabedorias dos povos. O canto e a celebração abriram cada círculo, uma ética que coloca a cosmovisão indígena em primeiro plano. Os curadores, Junia Torres e Daniel Munduruku, priorizaram a diversidade, propiciando-nos a rica experiência dos pensamentos indígenas em sua multiplicidade. Ofereceram-nos essa vivência variante como uma forma de combater a imagem homogênea, simplista e fixa do “índio brasileiro”, tão sedimentada na nossa sociedade, e muitas vezes reafirmada nos discursos midiáticos e educativos.

Abriram-se seis círculos de conversações com temáticas diversas: oralidade, literatura, cinema, midiativismo, educação e direito. A comemoração dos 30 anos da Constituição Brasileira, com a presença de importantes lideranças que lutaram para garantir direitos aos povos indígenas, possibilitou a atualização de uma preciosa memória para o movimento indígena. O encontro geracional fertilizou o chão dos(as) jovens que seguem bravamente neste longo e difícil caminho de garantia dos direitos constitucionais. Em cada roda, vimos criativas formas de resistir às forças que desejam a invisibilidade e o desaparecimento dos indígenas nos seus territórios tradicionais, na educação, no direito, nas artes, na vida. Multiplicidade, variância e resistência fizeram os círculos girar e ativaram o tempo da memória. Sementes-gentes girando com força dentro de um grande maraca, que se fez por dois dias em pleno centro financeiro do país. Nesses giros provocados pelo Mekukradjá, escolho quatro dobras, dentre muitas outras, que produziram potentes desassossegos nos meus modos de sentir, ver e perceber. Giros que ainda ressoam.

Dobra 1: um corpo que filma e a imagem como bem coletivo

Durante a oficina Midiativismo e Realização Audiovisual Indígena: a Experiência do Xingu, Kamikia Kisedje ofereceu-nos ricas histórias de seu percurso como fotógrafo, realizador, cineasta e formador audiovisual. Em cada detalhe de sua experiência com o cinema expressa-se o elaborado senso estético e ético do povo Kisedje. Apresentou-nos sua técnica de filmagem que faz da alça da câmera um suporte para dar firmeza às mãos. Criou essa técnica para poder filmar ao mesmo tempo que participa dos rituais de seu povo; não gosta de usar equipamentos como tripé e outros suportes de câmera. Nesse gesto de fusão entre o corpo e a máquina, seu corpo filma, seu corpo é a câmera. E as imagens ganham outras dimensões quando criadas por um corpo Kisedje. Lembrei-me de Rosalind Krauss, que um dia escreveu que a fotografia é uma arte corpórea, e não essencialmente visual. A arte corpórea do cinema de Kamikia se faz imersa na cosmovisão seu povo e poderia ser pensada como uma arte ritual: cinema que oferece visagens ao mundo.

Assistimos ao filme Mulheres Guerreiras – Txêjkhô Khãm Mby, realizado pela comunidade Kisedje: uma encenação de um de seus mitos de criação. O filme é a expansão de um corpo coletivo. Esse corpo é acionado na escolha do tema, na filmagem, na edição e na definição da montagem final. Há aí um outro conceito de autoria: a imagem, para os Kisedje, é um bem coletivo. Kamikia, quando realiza trabalhos documentais, afirma: “Eu me aproximo para fotografar a pessoa, não uso o zoom, é um jeito de mostrar que estou fotografando e ter sua permissão para isso”. Há nesse cinema uma outra estética, uma outra ética e muito a ensinar ao pensamento e à realização audiovisual não indígena.

Dobra 2: arte, vida e literaturas indígenas

O artista, desenhista, performer e escritor Macuxi Jaider Esbell nos diz: “As palavras arte e indígena não se dissociam”. Toda expressão indígena se faz artisticamente. Nesse pensamento, arte e vida não se separam. De outras maneiras, Ariabo Kezo, mestre em letras e escritor do povo Balatiponé, também faz balançar conceitos modernos que se constroem a partir da lógica binária que opõe, separa e segrega. Os indígenas parecem querer nos levar a um pensamento múltiplo e agregador. Ariabo inicia sua fala cantando junto com Julá Paré, seu mestre, projetado em uma tela. Há um desdobramento de uma imagem que retorna e, ao mesmo tempo, aponta para a frente. O audiovisual não se opõe ao canto tradicional de seu povo, é chamado para alimentar a oralidade Balatiponé. Ariabo defende um conceito de literatura em seu sentido ampliado. A literatura de seu povo existe nas histórias, nos cantos, nas artes materiais. Para ele, a palavra escrita dos livros é apenas uma das manifestações daquilo que podemos chamar de literatura. Uma dobra conceitual realizada por um acadêmico indígena em conjunto com seus mestres e mestras. “O trançado de uma cestaria é literatura, o desenho de uma pulseira é literatura, o canto é literatura...”, nos diz Ariabo Kezo. Há uma narrativa inscrita em cada grafismo, diante dos quais somos analfabetos. “Não somos culturas ágrafas, como concluíram linguistas, temos nossos modos de escrita, que eles não souberam ler.” A própria dicotomia entre palavra e imagem é desfeita nesse pensamento. Outras palavras, outras imagens, outras literaturas. E enquanto escrevo tenho ainda em minha pele o grafismo que recebi de Irekran Kaiapó, que em seu silêncio nos oferecia imagens (ou escritas?) durante o evento. “Um tracajá”, ela me disse. Sigo com um casco de tartaruga inscrito em minha pele. Linhas que fazem parte de um amplo universo cosmológico que desconheço. Um convite à leitura das precisas e belas linhas Kaiapó que enlaçam a mulher, o tracajá, a vida e a arte.

Dobra 3: um elogio à alegria e sobre habitar o território inimigo

Com alegria, Severiá Idioriê abre o círculo de conversa falando fluentemente em língua inglesa. Depois de alguns minutos habitando esta terra estrangeira, entoa um bonito canto em língua Xavante: o canto do colibri. Este seu modo inesperado e performático de entrar na roda cria uma tensão. Depois disso, traça de forma rápida sua trajetória. “Sou filha do povo Karajá, casei-me com um homem do povo Xavante, nossos adversários. Sei muito bem o que é viver no território do inimigo.” Severiá nos apresenta, em performance, a arte de resistir desde dentro. Como agir na língua do outro e articular, dentro dela, outras lógicas? Como criar alianças no interior do que se imaginou como impossibilidade? Sua vida e seu pensamento se fizeram nas fronteiras de diferentes mundos – mundo Karajá, Xavante, mundos não indígenas –, e talvez por isso consiga transitar com habilidade entre diversos territórios, epistemologias, línguas e lógicas. A alegria e a sagacidade de Severiá parecem ser suas principais estratégias para fazer seus potentes movimentos de ir e vir. Há aí uma outra imagem de resistência a ser ouvida com atenção: resistência gestada desde dentro da sabedoria de uma mulher Karajá.

Dobra 4: o tempo circular e o movimento da memória

O Movimento da Memória foi o tema do encontro. Como esse movimento pode ser pensado a partir da imagem do tempo indígena? Daniel Munduruku nos apresenta uma imagem de tempo do povo Munduruku:

“Em nossa compreensão de tempo, temos apenas o passado – o tempo da memória – e o presente, o tempo do agora. A palavra futuro não foi inventada por nós porque, vocês sabem, o futuro não existe. Ele é pura especulação da mente humana que o criou com o objetivo de nos iludir e aceitarmos a condição de eternos dependentes do tempo. Para os povos indígenas, a língua manifesta a realidade conhecida, experimentada, compartilhada, e isso tudo só é possível quando vivemos o presente.”

O tempo cronológico como uma seta reta e linear que sequencia passado, presente e futuro perde consistência nessa imagem de tempo indígena. O futuro como aquilo que dá sentido ao tempo perde força. Na lógica indígena, o presente se manifesta como principal dimensão e o tempo aparece como uma linha circular sempre aberta. É no presente que a memória e o porvir se conjuram, é no presente vivo que o tempo se engravida de memória para seguir. Desde essa dobra na imagem do tempo, a memória não é um retorno ou resgate, mas uma realimentação do presente para dar forças para seguir rumo a um tempo sempre imprevisível. A linha circular indígena parece produzir um movimento sempre novo em reconexões temporais constantemente abertas. Nessa outra lógica, o futuro não pode ser previsto, planejado e controlado, nessa dobra temporal abrem-se múltiplas possibilidades. O Mekukradjá produziu potentes reencontros, engravidou-nos de sonhos em cada experiência de vida e resistência que a roda recebeu. Na roda-maraca de saberes, o movimento da memória parece ter sido ativado para criar uma energia potencial para atravessarmos juntos os inesperados tempos que virão.

 

Alik Wunder é professora do Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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