Há 60 anos Plínio Marcos (1935-1999) colocou ponto-final em sua primeira peça, Barrela, espécie d...
Publicado em 08/10/2018
Atualizado às 17:54 de 27/08/2019
Há 60 anos Plínio Marcos (1935-1999) colocou ponto-final em sua primeira peça, Barrela, espécie de presságio da falência do sistema prisional no Brasil. Como não poderia deixar de ser, o legado artístico do dramaturgo santista gravitou a conversa acerca do espetáculo Navalha na Carne Negra, dirigido por José Fernando de Peixoto Azevedo e com atuação de Lucelia Sergio, Raphael Garcia e Rodrigo dos Santos, todos eles artistas negros.
O 24o Encontro com o Espectador, que aconteceu na tarde de 30 de setembro, contou com a presença de Azevedo e de Santos. Na mediação, o jornalista Kil Abreu observou como a entrada em cena de Lucelia com uma peruca, da qual ela se desfaz logo em seguida, já demarca a questão racial e traça uma perspectiva histórica da peça escrita em 1967, portanto há mais de meio século.
“Nessa primeira cena já tem uma marcação de posição: uma personagem desvestindo outra, a da puta em situação social e existencial”, afirma. Esse gesto se torna mais significativo quando se sabe que a personagem Neusa Sueli frequenta o imaginário dos palcos brasileiros por atuações de Ruthinéia de Moraes (protagonista da primeira montagem), Tônia Carrero, Vera Fischer e Louise Cardoso, para ficar nos rostos e nos corpos não negros delineados pela cultura televisiva, no caso das três últimas.
Encerrados no quarto de uma pensão, a prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado (Santos) e o camareiro Veludo (Garcia) vão expor suas diferenças, desejos e conflitos a partir do desaparecimento do dinheiro que ela deixou para o “seu dono”. Veludo é gay, e a sexualidade está entre os múltiplos deslizamentos que essa montagem provoca.
Mais que adaptar, reler ou desconstruir a peça, cujo texto é mantido praticamente em sua totalidade, Abreu afirma que Navalha na Carne Negra tem no modo de encenar a sua razão crítica. O espetáculo “vai operando uma série de suspensões”, quebrando a expectativa naturalista quanto aos diálogos e às situações. Notadamente pelo dispositivo cênico concebido por Azevedo – o recurso do vídeo –, sobrepondo uma camada audiovisual ao microcosmo de violências físicas, verbais e socioeconômicas.
Segundo o diretor, a presença de uma quarta figura em cena, a videomaker Isabel Praxedes, equivale ao ponto de vista de Neusa Sueli. As imagens são captadas e projetadas simultaneamente em dois monitores ao fundo do palco, suscitando angulações outras que não o primeiro plano (frontal) que o espectador contempla da plateia.
As quebras, as descontinuidades e as repetições por meio da gestualidade ou simplesmente “rebobinando” uma sequência inteira estabelecem outros deslocamentos racionais. Isso interrompe a convenção naturalista na representação dos tipos sociais recorrentes nas peças do autor.
“Será que somos gente?”, indaga Neusa Sueli a certa altura. O “sórdido quarto de hotel de quinta classe”, como indica o dramaturgo, é circunscrito a móvel único: uma cama. Em torno dela giram o trio e o espaço cênico, à maneira de um estúdio de gravação de imagens.
Interação do público
Presente na plateia do Encontro com o Espectador e também na do espetáculo, a crítica cubana Vivian Martínez Tabares comentou que em seu país não existe o segmento de teatro negro nos moldes como ela percebe politicamente na experiência brasileira, fenômeno da produção atual em que artistas e coletivos priorizam temas que digam respeito à identidade negra, à matriz africana – em suma, a arte e a cultura capazes de gerar sinapses antirracismo sustentadas pelo manejo da linguagem.
Com bacharelado e mestrado em filosofia, Rodrigo dos Santos situou seu lugar de fala como artista e contramestre de capoeira e ogã de terreiro. Evocou ancestralidade e o trabalho continuado na Cia. dos Comuns (RJ), com a qual trabalhou de 2001 a 2009.
Azevedo, por sua vez, compartilhou como a autodeclarada condição de homem negro ganhou voz, corpo e consciência há cerca de dois anos, ainda que reflexões identitárias relativas a racismo, gênero e homofobia já eram pontuadas em obras do grupo do qual foi fundador, o Teatro de Narradores (1997-2017). Idem nas parcerias paralelas, como no espetáculo Ensaio sobre Carolina (2007), com a Cia. Os Crespos, a partir do livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Não por acaso, Lucelia Sergio é integrante d’Os Crespos e Raphael Garcia do Coletivo Negro, configurando assim outra característica dos envolvidos no processo criativo de Navalha na Carne Negra: todos derivam de modos de criar e produzir em grupo.
Em certa medida, o espetáculo cumpriu à risca alguns dos apontamentos que o professor e crítico literário Alcir Pécora [Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)] fez em sua explanação na mesa de debate que dividiu com a atriz Walderez de Barros, com quem o autor de Dois Perdidos numa Noite Suja foi casado entre 1963 e 1984. Eles conversaram movidos pelo tema A Atualidade de Plínio Marcos, “Repórter de um Tempo Mau”, como parte da programação do ciclo Crítica em Movimento: Presente, realizado pelo Itaú Cultural de 26 de setembro a 7 de outubro.
Segundo Pécora, as personagens das peças de Plínio Marcos não devem ser circunscritas a um gueto ou à condição de margem. O subproletariado que emerge dos anos 1960, por exemplo, era absolutamente central, e não lateral na organização da cidade brasileira. O dramaturgo não os via como heróis e expunha contradições, além de trilhar um caminho atemporal contido na estrutura formal da obra. Independentemente do momento em que seja montada, Navalha na Carne jamais perderá sua potencialidade poética de intervir nos sujeitos sociais e históricos com os quais dialoga.
Outubro
Hotel Mariana é o espetáculo escolhido para a 25a edição do Encontro com o Espectador, agendada para 28 de outubro, das 15h às 17h, na Sala Vermelha do Itaú Cultural, parceiro da iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Os convidados Munir Pedrosa (ator, idealizador e codramaturgo) e Herbert Bianchi (ator, diretor e codramaturgo) vão conversar com o público a partir da montagem inspirada na maior tragédia socioambiental do Brasil, ocorrida em 5 de novembro de 2015, no interior de Minas Gerais.
A barragem de rejeitos de minérios de Fundão, em Mariana, com cerca de 55 bilhões de litros de lama espessa, rompeu-se sobre os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. O desastre foi provocado pela empresa Samarco, da qual a Vale do Rio Doce e a australiana BHP Billiton são controladoras. Depoimentos perturbadores e surpreendentes são levados ao espaço cênico, conforme pode ser visto em nova temporada na Biblioteca Mário de Andrade, na região central de São Paulo, todas as segundas-feiras de outubro, sempre às 19h, com sessões gratuitas.