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O dia depois do museu

Depois de três anos de encontros pelo mundo, curadores se reuniram no âmbito na Bienal de Berlim para pensar em propostas para a seguinte pergunta: se todos os museus do mundo e suas respectivas coleções fossem destruídos, qual seria o museu do futuro?

Publicado em 16/10/2018

Atualizado às 15:08 de 16/10/2018

Por Lorena Vicini

Marcelo Rezende conta que dividia um táxi com a também curadora Zdenka Badovinac, em Joanesburgo no início de 2017. Conversavam sobre quais eram os modos possíveis de pensar sobre o museu do futuro e vislumbraram um mundo distópico em que todos os museus do mundo teriam sido destruídos, todas as coleções teriam desaparecido e os curadores se confrontavam com a seguinte questão: se vamos reconstruir o museu das ruínas, o que será exibido?

Em uma tentativa de responder a essas perguntas, foi organizado um evento em formato experimental no âmbito da última Bienal de Berlim com o título “O dia depois do museu”.

Marcelo Rezende e Zdenka Badovinac apresentam a proposta do simpósio performativo “O dia depois do museu” (imagem: F. Anthea Schaap)

Mas como a realidade é muitas vezes mais fantasiosa que a própria ficção, na mesma semana do evento ocorreu o incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Para os nove curadores que haviam aceitado o convite para elaborar propostas para esse cenário pós-catástrofe, a questão que pairou foi: como falar de um mundo fictício quando, naquela mesma semana, ele havia se tornado realidade?
 

Museu como encontro
O simpósio performativo que integrou o programa da Bienal de Berlim teve sua origem três anos antes, quando o Goethe-Institut São Paulo, em 2015, lançou a seguinte questão: seria o museu ainda hoje um espaço adequado para a apresentação, documentação, mediação e arquivamento, ou até mesmo para a interação entre o observador e o objeto? Como parte do projeto Episódios do Sul, o Episódio Museal: sobre o futuro global dos museus, propôs a um grupo de curadores de museus e independentes que se reunisse em diversos lugares do mundo para trocar experiências sobre diferentes contextos e perguntas despertadas pelas várias realidades locais. Salvador (2015), La Paz e Santa Cruz de la Sierra (2016), Cidade do Cabo e Joanesburgo (2017) e Atenas (2017) foram os pontos de encontro do grupo. O intuito das viagens era mostrar diferentes contextos e práticas curatoriais, e como lidar com as questões sociais, políticas e estéticas levantadas por cada realidade. Mais do que soluções, os encontros consistiam em uma vontade de compartilhar coletivamente problemas, dúvidas, desejos e incapacidades, ou, como a curadora Marina Fokidis chamou, uma espécie de “psicanálise nômade”. Aos que quiserem saber mais sobre esses encontros, recomendo o relato de Luiza Proença, que integrou o grupo e conta suas impressões da experiência.

 

Museu como situação-limite
“O dia depois do museu” foi assim uma espécie de elaboração das questões levantadas neste encontro. Em conversas com os participantes (e também nos vídeos que registraram os encontros), fica claro que não o intuito não era encontrar uma fórmula que encerrasse as questões que o museu enfrenta hoje, mas sim de colocar o museu em um lugar que se permita mais vivo, em que sejam permitidos mais testes – e por consequência suas falhas abraçadas como parte deste processo. Marcelo Rezende fala de dois tipos de museus que são possíveis: “O primeiro é ‘o museu’, clássico, guardião de tesouros nacionais e universais. Um museu em que, por exemplo, uma criança entra sempre no papel de criança e não no papel de pessoa. O segundo tipo de museu é o que assume que é instável, e que, em razão disso, tem que se reinventar a todo o momento. É o museu que assume a capacidade de aprender com a comunidade, com os artistas, com suas próprias experiências. Como podemos reconectar o museu hoje nesta segunda narrativa? Museu parou de errar, parou de promover experiências. Se o museu não falha, significa que ele não está tentando”.

E foi nessa posição de tentativa-acerto-erro que encontramos curadores e diretores de renomadas instituições museológicas ao longo do evento. Cada um dos participantes desenvolveu a sua própria “performance”, ocupando um lugar que eles normalmente não experienciam.

Curadores corajosos se despiram do papel de curadores-oráculos, que sempre sabem o caminho o seguir, e se lançaram em um lugar incomum, inseguro e justamente por isso, vivo.

Museu pós-catástrofe: propostas

Gabi Ngobo nada falou: apresentou o vídeo de Nástio Mosquito “Nástia answers Gabi” (Nástia responde para Gabi), em que o artista, em nove cenas curtas, responde às perguntas feitas pela curadora. Questões das quais as grandes instituições museológicas hoje não conseguem se esquivar são tratadas pela personagem do vídeo ora com desprezo, ora com paixão: pós-colonialismo (“Não estou aqui para ajudar ninguém. [...] Só estou aqui para que você saiba que você não está fazendo o suficiente”) ou a crise institucional pela qual os museus passam (“Como é possível que a crise gere pânico nas pessoas? Como é possível não ficar excitado com uma situação de crise? Novas soluções. Mova-se em direção a alguma coisa. Transforme informação em conhecimento”) são algumas das falas trazidas por Nástia no vídeo.

Gabi Ngobo apresentou o vídeo “Nástia responde para Gabi”, do artista Nástio Mosquito  (imagem: F. Anthea Schaap)

Luiza Proença apresentou um aliento, elaborado junto com a diretora do Museo Nacional de Etnografia e Folclore em La Paz, Elvira Espejo. Alientos são cantos que têm a força de dar vida, de animar. Elvira e Luiza elaboraram um aliento para o museu, para dar ânimo e para que ele possa assim sair dessa crise e reanimar esses objetos meio mortos.  Um trecho curto do canto:

No dia seguinte ao museu,
restaram apenas as coisas que sabemos de cor
Histórias que saem dos corpos
Através da palavra falada
A palavra em movimento

Este texto está escrito
Portanto uma mentira
(como toda palavra inerte)
A história é verdadeira

Ainda integrou a proposta de Luiza Proença a participação de dois bombeiros fictícios, que leram trechos de posts das redes sociais sobre o incêndio no Museu Nacional no Rio de Janeiro, capturando as emoções mais imediatas do momento, ainda não elaboradas pelo tempo e pelas cinzas.

 

Luiza Proença inseriu como parte de sua apresentação a encenação de dois bombeiros fictícios para abordar o incêndio no Museu Nacional (imagem: F. Anthea Schaap)

 

Yilmaz Dziewior escreveu uma carta como se estivesse no dia depois do museu, falando do passado (nosso presente), com uma imagem projetada ao fundo de um ambiente sendo invadido por fumaça: “Do que eu lembro da época em que ainda havia museus? O museu era um lugar estranho. Lembro-me que muitas vezes a sua arquitetura era mais importante que sua coleção e suas atividades, que começou com o Guggenheim de Bilbao e teve seu ápice com o museu planejado por arquitetos estrelados em Abu Dahbi. Era horrível”.

Zdenka Badovinac fez um paralelo entre o cenário hipotético de catástrofe proposto pelo evento e o contexto pós-catástrofe depois da guerra, na Eslovênia: “O processo de autorreflexão do museu foi confrontado com seu próprio trauma. No dia depois do Museu, tudo o que nos restou foi a memória”.

Matthias Mühling trouxe imagens do museu Friedricianum (em Kassel, conhecido por sediar a Documenta), que foi destruído na Segunda Guerra Mundial. O que no evento é um ponto ficcional – a destruição dos museus – segundo Matthias é para a Alemanha um evento real.

Anna-Catharina Gebbers e Övül Durmusoglu apresentaram uma espécie de jogral-manifesto de como o museu do futuro deve ser: um lugar que fale a língua de sua comunidade com fluência; onde o queer pode ser abraçado como uma lógica, e não como uma caixa “diversidade”; um lugar que crie um ambiente de mútuo aprendizado para seus funcionários, artistas, políticos e público em geral; um lugar para exercícios coletivos de imaginação.

Marion Ackerman respondeu a uma carta que ficcionalmente teria sido enviada por Marcelo Rezende a todos os integrantes do grupo no dia após a catástrofe, em que pergunta: “Há rumores de que o mesmo aconteceu com vocês, que não há mais museus, coleções, arquivos, arquiteturas e peças histórias, nada mais. Sobraram apenas pessoas. Elas ainda estão aqui... poderíamos ter um museu apenas com pessoas, e nada mais? Seria esta uma oportunidade, ou apenas o fim?”. Marion responde: “Sua carta chegou aqui muitos anos depois de enviada. Eu diria que tudo é sobre a memória – material e imaterial. Se ainda há memória, ainda não é o fim”.

Por fim, Marcelo Rezende falou sobre como um museu pode morrer, tendo como pano de fundo o manto de D.Pedro II, que foi incendiado junto a todo o acervo do Museu Nacional. “Esculturas, pinturas, fetiches... tudo virou lixo”.  

Para Marcelo, o museu também pode morrer de causas naturais: “Um museu que passa a ser irrelevante para a sua comunidade é como um zumbi, morto em vida. Até que um dia morre de fato”.

Marcelo Rezende e o manto de D. Pedro II, parte do acervo perdido no Museu Nacional, ao fundo. (imagem: F. Anthea Schaap)

Existirá o museu depois de amanhã?

A pergunta – hoje – pode ser metafórica ou literal. Luiza Proença acha que sim, haverá museu depois do amanhã. Mas lembra, também, que são vários tipos de museu e pergunta: “De que museu você está falando? Do museu do Iluminismo? Ou de um museu como o Acervo da Laje? Que significado você quer dar para a palavra ‘museu’?”.

Um museu que atenda por outro nome, que tenha outra relação com seu público e com a memória? Que pense a questão do acervo (se há de ter algum) sob outros critérios que não uma história da arte parada no tempo e no espaço? Um museu que seja de fato representativo para sua comunidade, que seja um lugar de afeto? Para Zdenka Badovinac, o dia depois do museu não será marcado apenas pelo fim da existência do museu como o conhecemos hoje: “Em um cenário pós-catástrofe, nós, curadores, vamos finalmente nos ajudar”.

 

Matthias Mühling, Yilmaz Dziewior, Övül Durmusoglu, Anna-Catharina Gebbers, Zdenka Badovinac, Marcelo Rezende, Luiza Proença, Marion Ackermann e Gabi Ngcobo. (imagem: F. Anthea Schaap)

 

Participantes do evento: Anna-Catharina Gebbers (Nationalgalerie Hamburger Bahnhof), Gabi Ngcobo (Berlin Biennale 2018), Luiza Proença (curadora independente), Marcelo Rezende (ADA Dresden), Marion Ackermann (Staatliche Kunstsammlungen Dresden), Matthias Mühling (Städtische Galerie Lenbachhaus), Övül Durmusoglu  (independent curator Istanbul/ Berlim), Yilmaz Dziewior (Museum Ludwig Köln) e Zdenka Badovinac (Moderna Galerija Ljubljana).

Lorena Vicini é editora, gestora cultural e pesquisadora. Atualmente cursa o doutorado na Kunsthoschule Kassel.

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