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O exercício da cidadania é uma constante

Indígena da tradição Xúmono do Mato Grosso do Sul, o comunicador Marcos Terena relata em texto sobre como os povos indígenas formam uma civilização que exercita sua cidadania desde o primeiro grito de uma criança até o fim da vida

Publicado em 16/10/2018

Atualizado às 15:20 de 17/10/2018

por Marcos Terena

Aborígenes, silvícolas, selvagens, índios. Não importa. Somos uma civilização que exercita sua cidadania desde o primeiro grito de uma criança quando nasce até o último fechar dos olhos.

Somos as primeiras nações deste grande continente chamado Brasil.

Um dia no passado chegaram aos nossos territórios os primeiros europeus. Não tinham o que comer e pareciam perdidos e doentes, com olhares assustados que transmitiam medo e incertezas.

Educados como Cidadãos da Selva, nossos antepassados acolheram a todos com espírito humanístico do bem viver, que incluía condições básicas de um corpo saudável, como o banho, a água potável e os alimentos. Era uma demonstração de valores holísticos e de cosmovisão de quem sabia ler e conjugar a linguagem do vento, os sinais do sol, das estrelas e da lua.

Éramos povos que viviam em diferentes hábitats de todo este território com culturas sagradas, costumes religiosos e espíritos de luta muito distintos. Mais que poesias, corpos e mentes se mostrando livres entre rir, chorar, nascer, viver, morrer. Nada disso aqueles estrangeiros quiseram compreender. Logo começaram a impor suas ameaças de dominação. Eram doutrinadores de costumes e valores religiosos e econômicos que não conhecíamos.

O que é valor, então?

Não acumulávamos ou ajuntávamos para o amanhã. Como consumidores natos, sabíamos preservar e usufruir. Uma economia que não gera nem ricos nem pobres. Um sistema de vida que exige reciprocidade material e espiritual que ainda perdura em nossas aldeias, a cada amanhecer.

Terra é vida!

É sempre bom lembrar que no primeiro contato entre nossos ancestrais e o homem branco, segundo estudos, éramos mais de 6 milhões de pessoas. Atualmente restaram 500 mil pessoas vivendo em comunidades e territórios ancestrais. São mais de 300 sociedades com suas línguas, seus costumes e suas tradições culturais e espirituais, distribuídas em quase 15% do território nacional.

Após o primeiro contato e ao longo do tempo, o sistema colonizador nunca desistiu de transformar nossas sociedades em cidadanias formadas por regras, direitos e até a democracia impostas por eles, e das quais não fazíamos parte.

Transformaram-nos em vítimas e carentes de ações assistencialistas, paternalistas ou coercitivas.

Essa forma de conduta do colonizador, que escravizava, dominava e até matava famílias em suas próprias terras, e o acelerado desaparecimento de pessoas e povos levantaram em algum momento preocupações no sentido de justificar esses atos. Então vieram as leis e as disciplinas jurídicas e até mesmo religiosas.

Nunca nos consultaram, mas decidiam por nós como falar com Deus ou como preservar nossas terras, nossas vidas e nosso desenvolvimento nato. São práticas que ainda hoje nos impedem de sermos o que somos, desrespeitando nossa livre determinação.

No ano de 1977 chegaram a Brasília 15 jovens estudantes sob o patrocínio da Fundação Nacional do Índio (Funai). Eram indígenas de diversas etnias, com o mesmo sonho: estudar e formar-se nas universidades.

Muitos não tinham esse plano de vida. Viver na capital do país. Mas todos sabiam da força de nossos líderes espirituais. O Grande Espírito sempre segue os caminhos Indígenas.

Aprendendo a interpretar e a escrever o dia a dia de Brasília, a capital política do país, logo descobriram que possuíam direitos constitucionais e internacionais, ligados, por exemplo, à Convenção de Genebra. Descobriram também que o universo da sociedade envolvente desconhecia, em grande parte, os valores básicos da vida, como a natureza e a cultura indígena. Então era preciso estabelecer novas alianças para a criação de uma nova consciência.

Entre um jogo de futebol e as comemorações do Dia do Índio rugiu o momento de falar, contar a história do índio pelo próprio índio. Assim nasceu a União das Nações Indígenas, o primeiro movimento politizado e organizado indígena.

Nos anos 1980 a voz indígena começou a ecoar em vários círculos de debate, como as universidades e o jornalismo local e nacional conscientes.

Estando os indígenas acostumados às inquietações da dinâmica de vida da sociedade nacional, surgiu entre eles em 1986 o desafio de ajudar a escrever a Constituição Federal, mas para isso foi preciso se candidatar a uma vaga de deputado federal como parte da Assembleia Nacional Constituinte. E então seis indígenas se lançaram nessa missão, mas nenhum conseguiu se eleger. Os votos sonhados ou prometidos não apareceram.

Conscientes de que era preciso levantar a voz indígena, esses mesmos indígenas filiados a partidos decidiram montar suas estratégias. Com a ajuda de fortes aliados, criaram essas estratégias para os debates da Constituinte de maneira consciente para garantir seus direitos.

Um dos primeiros passos era levar aos grandes chefes indígenas essa missão e, com as suas bênçãos, receber um novo ânimo. Todos sabiam que os direitos indígenas deveriam ser parte da Carta Magna do Brasil.

O índio brasileiro demonstrou então que os seus direitos são parte da cidadania nacional de todos que para cá vieram compor nosso país.

Mesmo não havendo sido eleito nenhum constituinte indígena, a busca dos direitos indígenas prosseguiu com a luta pelos direitos coletivos à terra, pelo respeito à diversidade racial e ao meio ambiente e pela afirmação do Brasil multiétnico.

Como chegar ao cacique da Assembleia Constituinte?

Era preciso respeitar os códigos do Congresso Nacional, como as vestimentas e a burocracia regimental. Aqueles indígenas candidatos se reuniram e articularam um encontro com o deputado Ulysses Guimarães. Não era o momento do índio tradicional, mas dos negociadores indígenas – aqueles que sabem falar, conversar e interpretar a linguagem do homem branco para fazer valer esses direitos originários.

Num encontro interétnico e interpartidário, asseguraram o compromisso de que haveria liberdade para a participação indígena nas mesas de negociação dos capítulos da Constituinte, assim como dos direitos indígenas.

Após dois anos de reuniões, momentos de inquietação, desânimos e incertezas diante das forças contrárias, os articuladores indígenas, os movimentos e suas organizações ampliaram suas articulações com outros setores sociais, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

Após a construção do Capítulo dos Direitos dos Índios, foi preciso assegurar os votos necessários para a aprovação dos parlamentares.  

Era hora de o lobby indígena se manifestar. Era hora de confirmar a promessa de Ulysses Guimarães. Agora o novo encontro não seria apenas com os indígenas articuladores. Com eles estavam líderes tradicionais e espirituais, homens e mulheres. Antes, porém, desse encontro, todos subiram a rampa do Congresso Nacional para acender o Fogo Sagrado, inclusive os não indígenas.

No dia seguinte, após um chá de cadeira de duas horas, Ulysses Guimarães – ao ouvir o canto de guerra dos indígenas na antessala de seu gabinete – abriu a porta e uma nova luz passou a iluminar o nascimento da Carta Magna. A luz de quem não tinha voz. Foi nesse momento que um chefe indígena coroou o presidente da Assembleia Nacional Constituinte com um cocar de celebração. As testemunhas foram as câmeras e as fotos de um dos aliados mais importantes dessa caminhada: a imprensa livre, que fazia, assim, o testemunho público desse compromisso entre as Primeiras Nações e o Brasil.

Histórica e moralmente o Brasil é do índio, mas nunca desrespeitamos os limites de nossos territórios nem das leis.

Tendo assegurado um capítulo dos índios na Carta Magna, 30 anos depois torna-se importante recordar esses momentos. Nada foi gratuito nem será. Quando um povo quiser assegurar a proteção dos seus direitos, deve vigiar e lutar.

A garantia de que o governo federal teria de demarcar essas terras até 1993 nunca foi cumprida, e o mesmo Congresso Nacional, que é a casa do povo, continua sem representação indígena.

Há uma bancada de parlamentares dispostos a mudar as regras de nossos direitos. Novamente, sem nos consultar. Mas agora a guerra é diferente. Não somos restos de povos ou cidadãos de segunda categoria e incapazes. Há uma sociedade brasileira mais consciente.

Como Primeiras Nações, queremos um país livre de discriminações, megadiverso, forte social, cultural e economicamente – afinal, para nós, o exercício da cidadania é uma constante.

 

Marcos Terena é indígena da tradição Xúmono do Mato Grosso do Sul. É comunicador e articulador dos direitos indígenas na Constituinte.

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