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"O Menino e o Mundo", de Alê Abreu

Mesmo um leigo em cinema de animação, como eu, percebe já ao primeiro contato com O Menino e o Mundo que está diante de um filme extraordinário, que leva a um ponto extremo as possibilidades expressivas e poéticas desse gênero.

Publicado em 02/10/2017

Atualizado às 14:55 de 21/09/2018

Por José Geraldo Couto

por José Geraldo Couto

Mesmo um leigo em cinema de animação, como eu, percebe já ao primeiro contato com O Menino e o Mundo que está diante de um filme extraordinário, que leva a um ponto extremo as possibilidades expressivas e poéticas desse gênero sem se escorar na parafernália tecnológica que o tem dominado nos últimos tempos. Trata-se, na acepção forte da expressão, de um desenho animado, como se dizia antigamente.

As primeiras breves imagens que vemos na tela depois dos créditos de abertura são de figuras geométricas que perfazem círculos concêntricos, formando mandalas dentro de mandalas, num efeito caleidoscópico e quase hipnótico. Corta para uma pedra ou um ovo riscado de lápis de várias cores, que parece emitir música. Esse objeto irregular é encontrado por um menino traçado como um desenho singelo de criança: um círculo no lugar da cabeça, dois riscos verticais fazendo as vezes dos olhos, três fios de cabelo, braços e pernas-palito.

Esses elementos serão desenvolvidos durante todo o filme: a relação entre o geométrico e o irregular, com as marcas da técnica artesanal, os “rastros” do material empregado – e uma concepção visual que nunca se afasta do imaginário infantil. O menino caminha e o desenho vai se tornando mais complexo e colorido. Do lápis e do giz de cor passamos ao guache, a uma textura líquida, borrada, quando ele chega a um rio com seus peixes e sua vegetação aquática.

Sem narração, sem diálogos inteligíveis (só, muito de quando em quando, vozes proferindo fonemas “abstratos”, não identificáveis), o filme conta sua história: o menino mora com os pais no interior, e um dia o pai toma o trem e desaparece; o menino sai em busca do pai e acaba descobrindo o mundo – fazendas, fábricas, cidades, navios, oceano.

Não é o caso de contar aqui as etapas dessa trajetória, que ao final se volta sobre si mesma e enseja novas leituras do que veio até então. Cabe apenas notar alguns procedimentos engenhosos da construção narrativa e estética do filme. Por exemplo: o surgimento progressivo de formas e cores à medida que vão entrando em cena os seres e as coisas do mundo. Profundidade, perspectiva e volume parecem ser também dimensões conquistadas gradualmente pelo avanço do menino através do espaço – como se, a par da história do protagonista, se contasse também, de modo paralelo e subterrâneo, a história do próprio desenho de animação.

Nessa dupla viagem, o encantamento das descobertas está sempre matizado ou contrastado pela dureza do real, e vice-versa. As nuvens fofas em que o menino mergulha alegremente se misturam, a certa altura, com a fumaça da poluição fabril. O trem parece uma enorme lagarta que engole o pai e tudo mais que encontra pela frente.

As soluções e as invenções visuais são contínuas, surpreendentes. Em comparação com o longa de animação anterior do diretor, o belo Garoto Cósmico, que ainda contava com diálogos, música explicativa e uma narrativa mais tradicional, O Menino e o Mundo é um notável salto de liberdade e ousadia, mas sem perder o rigor formal e o eixo de suas tensões centrais, que passo a abordar a seguir.

Há uma primeira tensão (ou jogo) entre o pessoal e o impessoal, que se expressa, no plano da trama, no contraste entre o artesanato e a indústria, o indivíduo e a massa, a natureza e a “civilização” – e, no plano formal, na passagem da forma única à padronização e à simetria.

Um exemplo simples: a certa altura o menino se junta a um homem que tem uma carrocinha de mão e um cachorro. Esse personagem individual se despersonaliza quando sua carrocinha entra numa fileira de carrocinhas iguais à sua, formando um padrão de retângulos regulares. Um pé de algodão é uma planta singular até que se amplia o quadro e ele forma, com outros, fileiras e mais fileiras de círculos verdes. Do mesmo modo, uma janela de casa na metrópole, com tudo o que isso pode sugerir de aconchego, se transforma, quando “a câmera se afasta”, em mais um ponto de luz no skyline intimidador da cidade. O mesmo vale para os guarda-sóis coloridos na praia. Essa transmutação de formas individuais únicas em elementos de uma composição geométrica é o mesmo princípio do caleidoscópio, no qual cacos irregulares de vidro ou plástico formam mandalas ou arabescos geométricos.

A massificação e a “objetificação” dos seres têm como contraponto irônico uma espécie de “animalização” das máquinas. Já falei do trem que parece uma imensa lagarta onívora, mas há também guindastes que se assemelham a grifos mitológicos, escavadeiras que lembram dragões, navios que sugerem enormes aves aquáticas.

Uma operação estética ainda mais ousada é o jogo entre cor e música, ou mais precisamente entre cores e notas musicais. A frase melódica simples da flauta do pai emite bolinhas coloridas, mas todas parecidas. Já a riqueza melódica de vários instrumentos e vozes num desfile de Carnaval gera uma riqueza cromática análoga, quase como se o apolíneo (a forma) se transformasse no dionisíaco (a festa), o desenho em música, numa vibrante sinestesia. A música marcial da parada militar, por sua vez, emite notas de uma única cor: cinza-chumbo.

No auge do embate entre a cor e o cinza – concretizado na luta feroz entre dois grandes pássaros mitológicos –, o diretor parece ter sentido a necessidade de refutar uma visão romântica e consoladora, e insere um breve clipe com imagens reais de floresta destruída, fábricas poluidoras, automóveis, lixão, esgoto. É um choque de realidade cuja sublimação, na parte final do filme, se dá num patamar mais maduro, eticamente responsável. Nessa viagem existencial e estética, o espectador é incitado a observar criticamente o mundo, mas sem perder de vista o olhar encantado do menino.

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