Carmen Lúcia Rodrigues Arruda, conhecida como Malu Arruda, que integra a equipe de Ação Cultural da Coordenadoria de Desenvolvimento Cultural da Universidade Estadual de Campinas, comenta desafios para a criação de políticas culturais para as universidades em diálogo com as comunidades em que estão inseridas.
Publicado em 11/09/2017
Atualizado às 12:14 de 03/08/2018
Em abril de 2017 a Coordenadoria de Desenvolvimento Cultural da Universidade de Campinas (CDC/Unicamp) realizou o Fórum Gestão e Produção Cultural e Políticas Públicas de Cultura: o Papel da Universidade, organizado por Malu Arruda, que integra a equipe de Ação Cultural da CDC/Unicamp, em parceria com Cacá Machado, professor do Instituto de Artes da Unicamp, músico e produtor musical.
Malu Arruda comenta as ações da CDC junto à Unicamp e alguns desafios para as políticas culturais junto às universidades.
Malu Arruda (Carmen Lúcia Rodrigues Arruda) é relações públicas e doutora em ciências sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Responsável pelo serviço de Ação Cultural da Coordenadoria de Desenvolvimento Cultural (CDC), da Pró- Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da Unicamp, atua também no Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diferenciação Sociocultural (Gepedisc). O seu campo de pesquisa aborda as relações de trabalho, a formação profissional em arte e cultura e as políticas públicas de cultura.
Quais atividades compõem a ação cultural da Coordenadoria de Desenvolvimento Cultural da Universidade Estadual de Campinas (CDC/Unicamp)?
A área de Ação Cultural da CDC/Unicamp tem sido responsável pela articulação entre a área de cultura da Unicamp e órgãos, instituições, associações e coletivos – internos e externos –, buscando formas de amplificação dessa relação e troca de conhecimentos e experiências. O principal objetivo sempre foi a construção de uma política de desenvolvimento cultural para a Unicamp.
Para isso, promovemos a realização de debates, encontros, seminários e fóruns, na busca de acompanhar os movimentos desse campo, cuja complexidade e dinâmica promovem transformações rápidas e quase cotidianas.
Entendemos que as instituições de educação superior podem e devem ser lócus privilegiados de formação, pesquisa e análise crítica dessa temática. Em abril houve troca da administração da Unicamp e as novas diretrizes colocadas são a favor não somente da amplificação do campo da cultura, mas especialmente de sua institucionalização, com a criação de estruturas formais e sistêmicas para sua realização.
Quais foram as inquietações e preocupações que levaram vocês a trabalhar o tema do papel da universidade na gestão e na produção de políticas públicas de cultura no Fórum Pensamento Estratégico?
A ideia da realização do fórum com o tema Gestão e Produção Cultural e Políticas Públicas de Cultura: O Papel da Universidade nasceu justamente do trabalho que realizamos até aqui. Nesse percurso, conhecemos uma série de experiências de outras universidades, tanto no Brasil quanto em outros países. Como consequência, trouxemos para um fórum na Unicamp, realizado em 2014, o professor Artur Cristóvão, responsável pela implantação da política cultural da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Portugal, e María Adelaida Jaramillo González, da Universidade de Antioquia, na Colômbia, que foi uma das principais articuladoras para a criação de uma política cultural para o ensino superior naquele país. Além disso, visitamos e conhecemos experiências de Portugal e da França, países que têm trabalhado intensamente no sentido de criar mais por meio da cultura.
No Brasil, o campo da arte e da cultura representa hoje um importante elo entre as Instituições de Ensino Superior (IES) e as sociedades em seu entorno, sendo uma das áreas prioritárias de atuação do Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileiras (Forproex). A regional Sudeste do Forproex está desenvolvendo o projeto Corredor Cultural Forproex Sudeste, que realiza a circulação de produções culturais – música, artes da cena, exposições, cursos e oficinas – entre IES públicas de Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro, promovendo, por meio da extensão, o intercâmbio entre as instituições e as sociedades em que estão inseridas. A Unicamp faz parte desse projeto, sendo que a coordenação geral, a direção artística e a direção de comunicação estão sob responsabilidade da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da Unicamp, por meio da CDC.
No Nordeste, um exemplo atual e bastante emblemático é representado pela Universidade Federal do Cariri (CE), fundada em 2013, que criou, para além das pró-reitorias de graduação, pós-graduação e pesquisa, uma pró-reitoria específica para a cultura, com foco na promoção de debates, fruição, formação, experimentação, pesquisa e desenvolvimento, valorizando os desafios, as experimentações e as ações criativas.
A Unesco, desde a década de 1970, propõe um novo viés para o ensino superior, destacando que esse nível de ensino deve ser a etapa de reafirmação dos conceitos humanísticos adquiridos pelos indivíduos ao longo de sua formação e enfocando a cultura como elemento de identidade e de diminuição de desigualdades para os indivíduos e as nações. Isso foi reafirmado em conferências posteriores, colocando essas premissas como compromisso das universidades.
No Brasil, o Plano Nacional de Cultura, instituído em 2010, reflete a visão da Unesco tanto no que tange ao conceito de cultura quanto também nas ações previstas para a formação de agentes culturais. As três dimensões da cultura ali colocadas – simbólica, cidadã e econômica – demonstram a complexidade assumida pelo campo, que exige, para seu desenvolvimento, cada vez mais profissionais qualificados para a sua gestão e realização, formação a ser assumida também pela universidade, não somente para seus estudantes, como também para os agentes culturais com atuação pública e privada em todo o seu entorno.
Isso tudo nos levou a construir esse fórum, por entendermos que é premente o debate sobre o papel da universidade nesse contexto, no sentido de permitir a discussão e a formulação qualificada de políticas culturais específicas para o setor.
Qual é o balanço que você faz das mesas que foram apresentadas no fórum?
Ao pensar a organização do fórum, propusemo-nos a compor duas mesas com visões distintas sobre o papel da universidade na gestão e produção cultural e na formulação de políticas públicas de cultura. Na primeira, os convidados Guilherme Varella, Rachel Gadelha e João Brant foram chamados para refletir sobre o tema a partir de sua atuação no campo cultural fora da universidade, em instituições públicas ou privadas. Para a segunda, chamamos os professores universitários e pesquisadores Antônio Albino Canelas Rubim, Luiz Augusto Fernandes Rodrigues e Ivânio Lopes de Azevedo Júnior – também gestores culturais em algum momento de suas carreiras – para pensar a temática a partir da academia.
Os primeiros focaram as questões dos direitos culturais, do gestor/produtor cultural atuante no mercado em diferentes épocas de nossa história, do financiamento da cultura e dos sistemas culturais, entre outras. Todos reforçaram a importância do papel da universidade no pensamento crítico e analítico, na formação de quadros profissionais e na formulação de políticas públicas, pelas possibilidades de inovação e experimentação próprias do ambiente universitário. Destacaram também as possibilidades de permanência dadas pelo campo acadêmico, seus dados, registros e análises, diferentemente das mudanças pelas quais passam as instituições governamentais a cada nova administração.
A segunda mesa destacou as possibilidades internas das IES, que, para potencializá-las, precisam de ações articuladas e organizadas no sentido de criar sistemas e políticas institucionalizadas. Essas possibilidades passam pela formação de agentes culturais, pela criação, produção e difusão da cultura, pela formulação e experimentação de políticas culturais, tanto para a comunidade interna quanto para a comunidade externa da universidade. A cultura na universidade precisa ter corpo, estrutura e espaço formalizados e institucionais para a realização de seu potencial.
O debate superou nossas expectativas e também as do público, pelo que pudemos avaliar, gerando inclusive o embrião de uma rede de gestores culturais de IES, que deverá realizar seu primeiro encontro em setembro, em Salvador (BA), quando da realização do XIII Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Enecult).
Na sua opinião, quais são os desafios na criação de políticas culturais para as universidades? Como potencializá-las?
Os desafios são muitos. O principal deles talvez seja alinhar, difundir e amplificar o próprio conceito de cultura, em todas as suas dimensões. Construir com a comunidade universitária a noção de que cultura não se refere exclusivamente à arte – que é, por si só, elemento importante de transformação e ampliação do olhar. Políticas culturais implicam também direitos culturais, e precisam estar em articulação direta com outras políticas e outros direitos, como inclusive foi insistentemente reafirmado pelos convidados do fórum.
Uma das pautas fundamentais da política cultural é a diversidade. Em nossas universidades, essa questão é efervescente quando se assume, por exemplo, o debate sobre maior ingresso de estudantes advindos de camadas diversas da população. As possibilidades trazidas por esses estudantes vão impactar diretamente o ambiente acadêmico, carregando-o de novas visões.
Para que haja essa compreensão e para que a absorção seja plena, todas as áreas e disciplinas precisam estar imbuídas, de forma transversal, na discussão das questões culturais.
É preciso que a formulação dessa política se realize de baixo para cima, a partir de debates participativos, sistemáticos e sistêmicos acerca do tema. Só assim haverá de fato espaço para que se realize e se institucionalize.
Levando em conta que a universidade é um espaço que gera reflexões, críticas e discussões sobre diversas questões, é possível estimular esse espaço para que ele se relacione de forma mais próxima e perene com as comunidades? Como?
A pesquisa e o ensino acadêmicos estiveram, por longos anos, num patamar tido como inatingível para a maior parte da população, que hoje cobra participação nos resultados do investimento público. Essa participação sempre existiu, por meio das inovações geradas pela pesquisa e pela formação de profissionais qualificados para o atendimento das demandas da sociedade, mas essa nova forma de cobrança é bastante instigante para as instituições e, acredito, a área da arte e da cultura dentro e fora das universidades só tem a ganhar com essa transformação.
Essa exigência de participação, especialmente pelas comunidades mais próximas das instituições, tem sido crescente não só no Brasil, mas também em outros países. Na França, em 2013, foi assinado um acordo de cooperação, denominado Université, Lieu de Culture, entre o Ministério da Cultura e Comunicação, o Ministério do Ensino Superior e Pesquisa e a Conferência de Reitores das Universidades Francesas, cujo objetivo é que, por meio da cultura, os campi universitários sejam reconhecidos como lugares de experimentação, transmissão, difusão e criação cultural e artística, tanto para seus estudantes, professores e funcionários quanto para as comunidades próximas. E isso num país como a França, em que os serviços culturais das universidades existem desde a década de 1990. Fica clara a necessidade de explicitação cada vez maior dessa relação entre universidade e sociedade, que pode ser dada fortemente por esse campo.
Também em muitas IES públicas, no Brasil, a cultura tem sido trabalhada no sentido de tornar-se uma importante via de diálogo com a sociedade; na maior parte delas, como uma área específica dentro da extensão universitária. Percebe-se cada vez mais a importância que a área cultural vem assumindo nessas instituições. Tanto é que do fórum realizado aqui na Unicamp surgiu a ideia da criação do grupo Gestão Cultural das IES, para que se possibilitem trocas e intercâmbios, visando a implementação dessa nova linha de políticas.
A pesquisa Mapeamento dos Cursos de Gestão e Produção Cultural no Brasil – 1995 a 2015, realizada pelo Observatório Itaú Cultural, nos mostra que os dois primeiros cursos de produção cultural surgiram há mais de 20 anos. Em contraponto, ela aborda que os estados de São Paulo e Rio de Janeiro tiveram, de 1995 a 2016, o maior número de cursos iniciados, seguidos de Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Olhando para esse recorte territorial, como você avalia o impacto e os diálogos das universidades com as demandas de profissionalização?
Esses resultados reforçam dados apontados pelas pesquisas sobre os recursos disponibilizados pela Lei Rouanet, que também se concentram nessas regiões. A produção artística e cultural brasileira ainda tem sua maior expressão nos grandes centros, majoritariamente na Região Sudeste do país.
Os cursos de formação para agentes culturais – prioritariamente para produtores –acabam concentrados, da mesma forma, nesses locais, atendendo à demanda por profissionalização que gravita sobre as possibilidades de financiamento e, consequentemente, de realização da produção.
Além disso, os cursos de graduação e de pós-graduação em gestão e produção cultural oferecidos por nossas IES são absolutamente escassos e não há carreiras que prevejam uma formação específica para esses profissionais. Sabe-se que a gestão da cultura ainda é essencialmente feita por profissionais de diferentes áreas, que atuam intuitivamente e pelo acúmulo de experiências. Um sistema de cultura não se forma sem que haja os “organizadores da cultura”, como nomeado por Albino Rubim, profissionalmente formados. É nesse contexto que as universidades, especialmente as públicas, podem ser essenciais, transformando essa realidade.
Destaco as instituições públicas porque, em algumas regiões do Brasil mais afastadas dos centros, que receberam suas universidades nos últimos anos, o papel de formadoras e transformadoras para as populações locais e regionais tem sido vital. Percebemos isso nos congressos de extensão universitária, quando são compartilhadas as experiências por meio da apresentação de seus resultados.
E novamente aí a cultura, como porta para o diálogo, tem demonstrado sua importância, trazendo para dentro da universidade a tradição local e levando de volta os resultados da reflexão proposta, associada à apresentação de conhecimentos – teóricos e práticos – mais amplos, resultando em possibilidades concretas de formação de novos agentes, com novas e singulares visões, cada vez mais diversas e completas.
Também por isso entendo que a política cultural universitária, no Brasil, precisa ganhar cada vez mais espaço, construção que vem sendo feita por inúmeros agentes – estudantes, professores e técnico-administrativos – das universidades. A realização de fóruns e encontros possibilita a difusão e a articulação desses movimentos, que vêm surgindo de baixo para cima.
Essa dinâmica sistematizada e amplificada nas IES pode, inclusive, resultar na maior visibilidade das culturas regionais, colaborando para a descentralização da produção artística e cultural e, portanto, criando um círculo virtuoso de mudanças.