“As pessoas são visíveis. Não querer ver é não querer se envolver com a história do ser humano q...
Publicado em 14/09/2017
Atualizado às 14:55 de 21/09/2018
“As pessoas são visíveis. Não querer ver é não querer se envolver com a história do ser humano que sofre.”
(Maria Eulina Hilsenbeck, Clube das Mães do Brasil)
As simples e diretas palavras da maranhense reverberam em mim desde que ouvi a sua fala no Brechas Urbanas de agosto de 2017. Ela, que chegou a São Paulo há mais de 40 anos e viveu por quase dois em situação de rua, convive diariamente com catadores de lixo, ambulantes, ex-presidiários e crianças que fazem parte da quinta geração dos chamados filhos da rua na cidade.
Maria Eulina fundou em 1993 o Clube das Mães do Brasil, ONG voltada para o acolhimento e a capacitação profissional de pessoas socialmente vulneráveis. Todos os dias, ela pergunta a uma nova família que chega ao Castelinho da Rua Apa, sede da entidade, no centro de São Paulo: de onde vocês vieram? Assim, escuta histórias de vida nas quais se reconhece e reafirma seu propósito de colaborar com os que têm origens e caminhos próximos aos dela: são muitas mulheres, muitas pessoas de família negra, muitos nordestinos e nortistas. Questionando o uso da palavra invisibilidade para descrever pessoas marginalizadas no urbano, ela convida:
“Essas histórias precisam ser olhadas mais de perto”.
Este dado da Prefeitura de São Paulo apresentado pelo advogado Dito Barbosa, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, reforça a nossa hipócrita cegueira:
“40% da população da cidade não tem moradia ou vive em risco” (em cortiços, loteamentos clandestinos ou endividadas por um aluguel que – nas periferias – pode significar cerca de 70% da renda de uma família). “E sabemos que ter um teto é dos direitos mais fundamentais. É a porta de entrada para todos os outros”, ressalta.
Então, convenhamos:
O que escolhemos ignorar quando fingimos não perceber os mais de 4 milhões de pessoas que transitam extremamente vulneráveis pela maior cidade do país?
A especulação imobiliária. Os conflitos de terra. A herança da escravidão e do patriarcado. A desigualdade socioeconômica. A noção de bem-estar público. A empregabilidade. As mazelas do sistema penitenciário. Os dilemas da saúde pública. A violação ao direito de existir e de transitar nos territórios...
O debate na noite de quinta-feira 31 de agosto de 2017, em plena Avenida Paulista, trazia respostas cada vez que alguém se juntava à conversa. Bruno Torturra fez a costura das contribuições:
“É preciso rever as narrativas sobre as contradições contemporâneas no território das cidades”.
Daniel Mello, jornalista e membro do coletivo A Craco Resiste, também participou do debate e deu a sua definição sobre um espaço da capital paulista. “A Cracolândia não é sobre o crack; é uma comunidade de pessoas que estão lá porque não se enquadraram na sociedade por diversas razões: pessoas que saem do sistema penitenciário, pessoas que saem do convívio da família, pessoas que não possuem oportunidades. Somente 30% das pessoas são usuárias.”
Criar uma contranarrativa é justamente uma das demandas urgentes com relação à comunidade conhecida como Cracolândia: não é um endereço do crack no centro de São Paulo, é um grupo de pessoas que vivem na região central da cidade. Criado no final de 2016 para ajudar a comunidade a combater a crescente violência policial, o coletivo A Craco Resiste tem cerca de 30 voluntários que atuam em algumas frentes.
Por um lado, eles acreditam na importância de debates mais transparentes e racionais que compartilhem a realidade e ajudem a diminuir os estigmas implantados na sociedade. Por outro, relembram a importância do tempo e do afeto para uma aproximação humana a pessoas tão marginalizadas: cultivar um vínculo cuidadoso parece ser um pedido a quem pretende atuar na Cracolândia.
Os ecos do encontro me transportaram para Belém (PA): estive de novo diante do olhar dos retratados por Éder Oliveira. São olhares raros, já que ele amplifica a presença daqueles que, na capital paraense, não têm o poder de ver sua imagem cristalizada; pelo menos não em uma pauta da presença. Como Maria Eulina, Éder vê e revê histórias que poderiam ser a dele: o artista nasceu em um vilarejo muito pequeno e, em Belém, acompanhou vidas com a mesma origem se construírem às margens – não só geográficas – da cidade.
Diariamente, ele coleta retratos nas páginas policiais dos jornais de Belém do Pará: procura por pessoas anônimas, absolutamente comuns. Busca esses olhares específicos, aqueles que pedem pausa e tempo, que provocam algum tipo de vínculo: a vontade é de afetar, é de que não se passe imune. Ao se apropriar das fotografias, Éder se distancia dos conteúdos e nos convida a encarar imagens de pessoas que nos ensinaram a rejeitar. Seu trabalho em cores vibrantes e grandes formatos abre brechas para a ressignificação:
Quais novas histórias podemos imaginar para quem foi estampado como marginal?
Por telefone, conversamos sobre o tema “ausência”. Ele em Mato Grosso, eu em Minas Gerais. Enquanto ele me conta sua motivação para deixar aparecer, na obra, uma “grade que é mais do que física, é social”, penso que as escolhas de olhar são reflexões urgentes em muitos entroncamentos brasileiros.
Seguindo a conversa sobre suas inspirações, Éder sintetiza poeticamente a reflexão que, ao ser sobre identidade, talvez seja mais sobre mascaramento do que sobre invisibilidade:
“Eu gostaria de fazer com que as pessoas olhassem mais umas para as outras, essa é também uma forma de vermos as coisas invisíveis que são muito fortes e nos prendem distantes uns dos outros”.