O legado de Abdias Nascimento é forte e ecoa. Para muitos, ele é visto como a personificação da luta antirracista no século XX no Brasil....
Publicado em 28/12/2016
Atualizado às 16:00 de 21/08/2017
por Duanne Ribeiro
O legado de Abdias Nascimento é forte e ecoa. Para muitos, ele é visto como a personificação da luta antirracista no século XX no Brasil. A seguir, entenda como grupos que pensam questões raciais nos dias de hoje reverberam as principais ideias de Abdias sobre essa luta constante. Nesta entrevista, falam Flora Pereira e Natan Aquino, da agência Afreaka.
Como você vê a luta atual contra o racismo e pela afirmação da identidade negra? O que tem mudado, o que ainda precisa mudar?
A resistência negra continua forte, como sempre esteve. Ao longo da história foram muitos os homens e as mulheres negras que resistiram, como Dandara, Carolina Maria de Jesus, Zumbi e o capoeirista baiano Besouro Mangangá, entre outros. Nos tempos atuais, a luta ganhou outros contornos, inspirados em mais nomes, como Luiza Bairros, Sueli Carneiro, Hélio Santos, Carlos Moore, Djamila Ribeiro, o professor nigeriano e Nobel de Literatura Wole Soyinka e a escritora moçambicana Paulina Chiziane. O acesso de parte da população negra às universidades, à informação e às artes aumentou de forma considerável. Primeiro pela determinação de sempre, que levou à implementação de ações afirmativas. Não como um ato de bondade de governos, mas como o resultado de uma briga incansável por direitos e pelo mínimo de igualdade.
Mas ainda há muito o que mudar. A sociedade branca ainda precisa entender e abrir mão de seus privilégios, precisa entender que ela protagoniza sim o racismo e que deve refletir e alterar sua postura. A violência policial ainda mata nossos jovens, especialmente os homens, e a violência de gênero mata sobretudo as mulheres negras. As cadeias e as camadas sociais menos favorecidas ainda são formadas por uma maioria negra. E o racismo está solto e bem perceptível. Dizer que o racismo é velado no Brasil é absurdo. Ele é muito escancarado, só não vê quem não quer.
Como as atividades da Afreaka se encaixam nessa luta? O que vocês conseguiram transformar com seu trabalho?
Nosso grande objetivo é e sempre foi a quebra do estereótipo negativo sobre a África, que se formou como reflexo de uma sociedade racista. Procuramos quebrar esse preconceito em várias camadas: educacional, social, midiática. Assim, tentamos atuar em diferentes áreas, trabalhando para que o conteúdo do projeto seja cada vez mais acessível, não apenas no mundo das mídias sociais, mas também em escolas, bibliotecas, exposições e festivais. Com isso, procuramos a valorização da cultura africana e que as pessoas se conscientizem sobre a forte influência que ela tem em nossas vidas. A ideia não é discutir apenas o continente africano, mas sobretudo a sua produção cultural e intelectual, enxergando-o como um espaço ativo, protagonista. Ao desmistificar a imagem estereotipada do continente, rompe-se um fluxo de informação negativa que permeia o conteúdo hoje disposto em parte das redes de ensino e das grandes mídias brasileiras. Tentamos falar do outro lado da história, muito menos abordado: uma África proativa, inovadora, positiva e que, ao nos indicar muitos exemplos a serem seguidos, quebra uma linha pejorativa atribuída à cultura africana e afro-brasileira.
A proposta também é reforçar de maneira extracurricular a Lei nº 10.639/03 – que obriga o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas e ainda não foi implementada de maneira integral –, ao trazer um conteúdo inédito no Brasil. A linha editorial procura trabalhar o olhar do brasileiro sobre si mesmo e a ligação do país com o continente africano. Somente no nosso vocabulário são mais de 1.500 palavras de origem africana. Além de nossos costumes, linha de pensamento, higiene, tradições, culinária etc., que são intrinsecamente ligados à cultura do continente irmão. O Afreaka tenta suprimir parte dessa falta de conteúdo, principalmente sobre a contribuição histórico-social e cultural dos descendentes de africanos ao país, e desmitificar para o jovem a imagem passiva do negro e da sua história no Brasil – abordagem que constrói uma percepção problemática e racista no imaginário coletivo do próprio brasileiro, que deveria, desde o começo do seu processo de educação, enxergar a cultura negra como protagonista e formadora da sociedade atual.
Como lutar contra o racismo, seja na cultura, seja na política, seja no cotidiano? O que cada um de nós pode fazer?
É necessário que se admita a existência do racismo e o quão feroz ele é. Depois disso, é obrigatória a aplicação de medidas sociais de afirmação que busquem o mínimo de igualdade. Como indivíduos, é importante a pressão. A pressão para que mídia, empresas, governos e instituições educacionais trabalhem imprescindivelmente o tema, para que sejam mais representativos e dialoguem mais com a realidade brasileira, expondo o racismo existente, quebrando o mito da democracia racial e promovendo as culturas africanas e afrodescendentes.
Como veem o legado de Abdias Nascimento? Conhecem seu trabalho, ele os influenciou de alguma maneira, traz algo que lhes interessa?
Abdias Nascimento deixou um legado muito importante tanto para o movimento negro no Brasil quanto para a visibilidade da participação negra nas artes visuais e da cena. Para o Afreaka, ele foi uma das referências iniciais, sendo a primeira instituição visitada em busca de conhecimentos e parcerias o Ipeafro, fundado por Abdias com sede no Rio de Janeiro e que trabalha nas áreas de ensino, pesquisa, cultura e documentação. Temos grande admiração pelas lutas e pelas conquistas alcançadas ao longo de sua vida. Ocupamos nosso ambiente de trabalho com algumas de suas obras como forma de homenagem e referência.