Acessibilidade
Agenda

Fonte

A+A-
Alto ContrasteInverter CoresRedefinir
Agenda

O som que fez o som da Héloa

Leia entrevista com a artista sergipana e conheça as influências para a criação de um som próprio

Publicado em 14/04/2020

Atualizado às 18:40 de 26/08/2022

Por Amanda Rigamonti

O Som que Fez o Som foi uma série musical integrante do Álbum, site do Itaú Cultural dedicado à música. Tal série reunia indicações, feitas por diferentes artistas, de músicas que fizeram parte de suas trajetórias e foram importantes na busca pela criação de um som próprio. O Álbum saiu do ar, mas o IC decidiu retomar a série – a princípio, publicando textos que haviam sido postados no site e alimentando nosso Spotify com playlists compostas por essas indicações. Esse é o primeiro texto a ser republicado. O original foi ao ar em fevereiro de 2017.

A sergipana Héloa, que vive em São Paulo desde 2015, lançou em 2017 seu disco Eu. O álbum é recheado de composições de outros artistas, interpretadas por ela, e conta com uma de autoria própria. Ela diz que “o disco, embora tenha só uma música minha, se chama Eu por ter composições de outros autores que tiveram a mesma experiência que tive e que cantam suas memórias. Essas canções foram escolhidas para contar por mim uma história que eu estava vivenciando. Elas falam por mim. O álbum retrata muito não apenas o ‘Héloa eu’, mas os vários ‘eus’ que compõem esse disco”.

Produzido por Daniel Groove e João Vasconcelos e gravado e mixado por João Vasconcelos no estúdio Cambuci Roots, o disco traz músicas de Ruan Levy, Allen Alencar, Eduardo Escariz, Daniel Groove, Saulo Duarte, Otto, Alceu Valença e Geraldo Azevedo. A artista deu uma entrevista para o Álbum, contando um pouco de sua trajetória e da criação do Eu, além de indicar músicas que fizeram seu som e que foram importantes no processo de construção desse álbum de tantos “eus”. Ao final da entrevista é possível conhecer um pouco mais da relação de Héloa com as músicas indicadas. Aproveite e salve a playlist que montamos com as dicas no Spotify.

Como surgiu seu interesse pela música?

Meu pai é músico autodidata e começou a carreira cantando em barzinhos, vindo a atuar depois num trabalho voltado para a cultura popular do estado de Sergipe. E eu desde criança acompanhei algumas apresentações dele. Minha mãe é antropóloga e apaixonada pela música. Então, sempre tive isso de estudar música, teatro e dança, tudo ao mesmo tempo. Aos 13 anos estudei teatro e música também – canto lírico. Aos 17, já atuava havia algum tempo em espetáculos infantis, e entrei na faculdade de artes visuais na Universidade Federal de Sergipe. Nessa época tive uma banda de releituras. Não era um trabalho autoral, então comecei aos 17. Meu primeiro trabalho, entretanto, foi em 2013, quando me lancei em composições próprias com o EP Solta. 

Por que você veio para São Paulo?

Vim para São Paulo em agosto de 2015 em busca dessa imersão artística, pela qual já ansiava, com o projeto de gravar um disco e estudar cinema. Já tinha me formado, já dançava e atuava e queria de alguma forma poder trabalhar ao máximo essas vertentes.

Como você sente a diferença entre os públicos de Aracaju e de São Paulo?

Eu me senti muito bem acolhida pela cidade de São Paulo em termos de curiosidade com meu trabalho e com minha trajetória artística. Fui acolhida também por nordestinos que em algum momento fizeram o movimento de êxodo como eu. O local em que gravei meu disco e onde fui acolhida, O Cambuci Roots, é formado por artistas do Norte e do Nordeste, e esse encontro dentro dessa atmosfera me fez entender isso pelo qual passamos – esse estranhamento cultural, essa distância do litoral, a relação com a natureza. Ficar distante foi forte para mim; sempre morei perto da praia e sempre foi parte da minha construção.

Senti diferença no trato também. O paulistano é mais fechado. Acho que nós, nordestinos, somos mais abertos, com uma comunicação mais direta. Senti um estranhamento ainda maior com o concreto, com as regras... Mas no fundo acho que foi uma experiência muito rica, culturalmente falando, e é isso que constrói o disco. Tem a característica de Aracaju, mas tem também o concreto de São Paulo: acho que o disco reflete essa Héloa dividida e que se sente presente em ambos os espaços.

Sobre o que é Eu?

O disco, embora tenha só uma música minha, se chama Eu por ter composições de outros autores que tiveram a mesma experiência que tive e que cantam suas memórias. Essas canções foram escolhidas para contar por mim uma história que eu estava vivenciando. Elas falam por mim. O álbum retrata muito não apenas Eu, Héloa, mas os vários ‘eus’ que compõem esse disco. O que você sente durante uma apresentação? Por causa do teatro, já me relaciono com o palco há muitos anos. E sempre tento agregar as vertentes que carrego, tento pensar o show como um espetáculo, e não só cantando, mas usando meu corpo como desdobramento dessas canções. Exploro movimentos, penso em como posso desenhar essas canções de forma que as pessoas possam sentir o que sinto, quando interpreto cada uma delas. O palco é o lugar onde me sinto em casa – gosto dessa sensação de palco – e sempre penso o show de maneira macro; não consigo pensar só na questão musical. As artes visuais estão presentes também na capa do disco, que foi fotografada numa fábrica de canela em Aracaju, mas que remete à ideia de São Paulo de fluxo e máquinas. Nas fotos feitas para o disco, estou banhada de ouro, que remete ao sol de Aracaju, e tenho uma conexão com o pôr do sol da minha cidade. Cada elemento é pensado junto, formando essa estética que compõe esse Eu, esse show no todo.

Como funciona seu processo de composição?

Ele é muito baseado na canção. Sou uma grande admiradora da canção, da letra, da poesia. A minha forma de compor é intuitiva, mas roteirizada, ligada à dramaturgia. Então, componho como quem relata uma cena. No final, a composição vem de um processo de vivência. Às vezes, passo o dia na rua e observo. Então, quando chego em casa, ela se dá em forma de canção, eu me coloco no lugar de observadora mesmo: de pessoas, de histórias e da minha própria história. Consigo me colocar de fora para contar a minha história. Costumo dizer que Eu é um disco que está em quadrinho e concreto. Tem esse ar de brisa, essa voz, que é um canto meu, mas tem na composição e nos arranjos um pouco da dureza do rock e da vanguarda paulistana. É um disco que reflete uma artista em movimento, vivenciando a imersão a cada dia.

Confira as músicas indicadas por Héloa:

1. “Passarinho”, de Gal Costa

Gal Costa é, sem dúvida, uma das minhas maiores referências musicais. Minha mãe a ouvia bastante na minha infância, e o mais interessante disso tudo é que meu pai, também músico, cantor, tem em sua história uma relação bem forte com Gal. No início de sua carreira, nos bares onde cantava, e mais precisamente onde meus pais se conheceram, conta minha mãe que ele cantava muito Gal Costa, e chegou a ser apelidado de “Jorge Gal” por muitos que se impressionavam com o alcance de seus falsetes. Muitas vezes eu o ouvi cantá-la. Passarinho”, especificamente, é uma das canções que mais gosto do álbum Índia e me traz essa lembrança.

2. “Mysterons”, de Portishead

Conheci Portishead pelo meu pai e em meus estudos de canto eu sempre entoava suas músicas. Tive a primeira banda aos 15 anos, em que eu cantava várias canções deles, do disco Dummy – que marcou muito minha adolescência e foi também uma das minhas primeiras referências de música eletrônica, sintetizadores e trip hop.

3. “João e Maria”, de Chico Buarque

Amo essa música e sempre me emociono ao ouvi-la. Pelo lirismo, pela ludicidade e pela suavidade. Em minha formação de atriz, iniciei no teatro infantil, e “João e Maria” é uma canção que sempre me remeteu a esse imaginário, à criança, aos contos e às histórias. Tive a oportunidade de cantá-la algumas vezes em momentos de contação de histórias infantis e é impressionante perceber quanto ela me arrepia até hoje.

4. “Me Deixe em Paz, de Airton Amorim e Monsueto Meneses

Morei 25 anos com minha avó, uma apaixonada por música. Ouvíamos muito vinil juntas e um programa de rádio local, Choros e Canções, que tocava sempre às 18h na rádio pública de Sergipe. Eram tocados muitas cantoras de rádio e canções do cancioneiro popular. Com minha avó conheci o samba-canção, o chorinho, o bolero, a música romântica. Ela, uma romântica de carteirinha, vivia a cantar Me Deixe em Paz. Entre as tantas versões, a preferida da Vó Bela é a cantada por Linda Batista, e se tornou a minha também.

5. “Nana”, de Wilson Simonal

Sou muito fã do Wilson Simonal, não só pelas canções mas pela sua história de vida. Ele tinha um canto sofrido e alegre ao mesmo tempo. É impressionante o jeito como brincava com a canção e entoava as palavras, sem falar na presença cênica e na força no palco. Para mim, um dos maiores ícones da música negra brasileira, detentor de uma técnica e qualidade vocal sem iguais. É difícil escolher apenas uma dele, mas “Nana” é, sem dúvida, uma das que mais me tocam.

6. “Paz Interior”, de Tim Maia

Um clássico! E como ouvi esse disco – Tim Maia Racional Vol. 1 e 2! No começo da carreira de cantora, tive um projeto musical que ousava fazer releituras do disco. “Paz Interior” é uma música que, em particular, gosto bastante dos arranjos de sopro, bem característicos das músicas do Tim.

7. “Tola Foi Você”, de Angela Ro Ro

Mais uma do baú de memórias com minha avó. Sou impressionada pela maneira de Angela cantar. A voz rouca e rasgada e suave ao mesmo tempo. Em termos de canção, essa música possui umas das poesias mais belas que conheço. Visceral, romântica, realista e de uma ironia que gosto bastante.

8. “No Ordinary Love”, de Sade

O canto suave e sensual de Sade é uma grande referência pra mim. Conheci através dos meus pais, ainda criança, e ouvíamos muito. Meu pai comentava que eu seria parecida com ela quando crescesse e sempre elogiava a presença elegante com que ela cantava, bem como sua performance no palco. Eu me lembro de meu pai ter me mostrado o DVD Live in Munich 1984, e eu ficar encantada com aquela mulher negra, maravilhosa. Uma inspiração. "No Ordinary Love” é uma de minhas preferidas.

9. “Amor que Vai”, de Alceu Valença

Alceu Valença foi um dos cantores que mais ouvi na vida. Difícil escolher só uma dele. Suas canções fazem parte do imaginário da minha vivência em Aracaju e das festas tradicionais – período junino, reuniões familiares. Sempre curti muito essa época. Sempre me encantou o sotaque, o violão dedilhado das canções, a poesia muito imagética de cavalos alados, de brisa, com ar litorâneo.

10. “Nervos de Aço”, de Lupicínio Rodrigues

Canções de dor de cotovelo, como bem dizia a romântica Vó Bela. Lupicínio é o melhor para a temática, a linguagem dissolvida, direta, sofrida, como quem conta uma história, sempre me encantou. A música simples que toca direto no coração. Uma das maiores referência de samba e choro para mim. “Nervos de Aço” é de chorar todas as vezes que escuto. Sim, Lupicínio me arranca lágrimas.

11. “Tempo de Amor”, de Vinicius de Moraes e Baden Powell

Uma das maiores obras musicais para mim, Os Afro-Sambas é todo um disco muito marcante. Foi o primeiro que ouvi sobre orixás e candomblé, ainda nova. Eu nem imaginava que seria da religião. É um disco meio mântrico, de ouvir em repetição. Uma maneira aberta e até mesmo pop, que não buscou necessariamente ser fidedigno aos ritmos tradicionais africanos, misturou bossa nova, religiosidade e existência para falar da poética dos orixás. “Tempo de Amor” é a preferida. Marcante.

12. “All Souls Night”, de Loreena McKennitt

Conheci a Loreena pela minha mãe. Nos meus tempos de bailarina, coreografava muitas de suas músicas e as cantava também nas aulas de canto lírico. O álbum The Visit fez parte desse meu contexto da relação música, corpo e trilha sonora, e mais ainda depois, quando descobri que o disco foi inspirado em texto e poemas de Shakespeare. Foi uma das primeiras referências de música oriental e celta que ouvi.

Compartilhe