por Duanne Ribeiro
Incrível como uma pessoa permanece nas suas coisas. No acervo de Antonio Candido a sua personalidade é flagrante: podemos recuperá-la nas folhas sem pauta preenchidas com uma caligrafia retinha, na distribuição de cadernos por temas de estudo e projetos, na elaboração atenciosa das cartas de resposta a parceiros e alunos, na contínua revisão do que escrevera – que se coloca em manuscritos, datiloscritos e textos publicados.
Disponibilizado a partir de 2018 pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), equipamento da Universidade de São Paulo (USP), o acervo foi a base desta Ocupação. O Itaú Cultural apoiou a organização desse arquivo, e nós da equipe, acompanhados pela designer e editora Laura Escorel, neta do crítico, realizamos uma das primeiras pesquisas nesses documentos.
Encontramos lá, como dito, Candido; e assim encontramos os temas dos seus livros, em contextos que não o da publicação. Uma pesquisa desse gênero tem a sua cota de caça ao tesouro e de viagem no tempo: vimos pensamentos que apareceriam concretizados, por exemplo, em Literatura e Sociedade em estado preliminar, bastante próximos ainda da revisão bibliográfica, permeados de fichamentos, com caminhos apenas esboçados.
Nesses materiais também nos surpreendemos com a autocrítica constante do professor (por exemplo, anotando sobre o recorte de um dos seus artigos na Folha da Manhã, ele denuncia o seu próprio “sectarismo”, que o levou a criticar “seu autor predileto” – o francês Marcel Proust). Descobrimos o seu bom humor (numa foto em que posa com um cachorro, escreve: “O de branco sou eu”), acompanhamos seu engajamento político, desde o apoio a professores perseguidos até ações do Partido dos Trabalhadores, do qual foi fundador. Comprovamos sua modéstia ao conferir as várias homenagens que declinou.
“Mas por que negar honras?”, poderíamos perguntar. O que Candido temia era se tornar um “bode exultório”, isto é, uma espécie de oposto do bode expiatório, que levasse não a culpa de tudo, mas, por automatismo, os louros de tudo. Não gostava da perspectiva de acabar “nome de prédio”, e talvez lhe parecesse esquisita uma exposição sobre si. O crítico estava nos seus textos e no movimento de escritura; não em um nome elogiado.
Essa postura talvez seja identificável neste pequeno trecho de Formação da Literatura Brasileira, um dos seus livros mais importantes:
Toda crítica viva – isto é, que empenha a personalidade do crítico e intervém na sensibilidade do leitor – parte de uma impressão para chegar a um juízo, e a histórica não foge a esta contingência. Isto não significa, porém, impressionismo nem dogmatismo, pois entre as duas pontas se interpõe algo que constitui a seara própria do crítico, dando validade ao seu esforço e seriedade ao seu propósito: o trabalho construtivo de pesquisa, informação, exegese.
“Crítica viva”, “trabalho construtivo”: os adjetivos trazem a imagem do que é dinâmico e servem para descrever um diálogo entre o crítico – que parte do que é subjetivo e cria uma perspectiva fundamentada – e o leitor – diante do qual não se põe um dogma, mas se apresenta o ponto de chegada de um raciocínio (sempre passível de reavaliação).
Por meio dessa percepção podemos sugerir um meio de ler Antonio Candido sem torná-lo um monumento: basta seguirmos a mesma mobilidade que o guiou. Sobretudo se aprofundar na sua produção, redescobrir sua atualidade – e partir daí para, como ele tantas vezes o fez, produzir nova pesquisa, informação, exegese.