Antonio Candido, no caderno Revolucionários, esboça uma pesquisa para lidar com uma figura que, à sua época, assumira a centralidade que receberam “o herói civilizador nas culturas primitivas, o santo no medievo cristão, o guerreiro nas civilizações militares e feudais, o capitalista na civilização burguesa” – isto é, o revolucionário. Nas poucas páginas do projeto, o sociólogo descreve esse tipo de ator social, seus desenvolvimentos – os diferentes caráteres que chega a ter – e suas problemáticas.
Assim, Candido afirma que o revolucionário é uma manifestação do rebelde, que vem a existir após a Revolução Francesa de 1789. No século XIX, esse personagem ganha a sua “forma mais completa” com o revolucionário profissional. A esses militantes dedicados integralmente a uma causa – diz o professor em “Radicais de ocasião”, artigo publicado pela revista Discurso em 1978 – “o nosso tempo deve algumas das suas realizações mais espantosas, tanto as redentoras quanto as atrozes”.
Acompanhamos ainda em Revolucionários uma análise de como o gesto revolucionário se transforma de acordo com o território em que é realizado (teríamos “uma divisão do mundo em áreas reformistas e revolucionárias”) e segundo um enrijecimento que se inicia já na profissionalização e atinge seu máximo na burocracia estatal. A partir dessa visão, e criando ainda outros conceitos, Candido interpreta a evolução da União Soviética.
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Transcrição
Um estudo sociológico sobre o revolucionário como tipo social, que obedeceria ao seguinte plano provisório.
O ajustamento do indivíduo com a estrutura social se faz mediante uma série de fatores (coerções propriamente ditas, padrões ideais, relações concretas etc.) inclusive a adoção de uma atitude preferencial, à qual se refere a conduta ou o ideal de conduta.
Por isso, cada civilização, ou melhor, cada época forja por assim dizer um certo número de tipos humanos ideais, que representam como que a cristalização das principais expectativas de comportamento. Em nosso tempo, delimitou-se e tomou formas precisas a figura do revolucionário, do homem que toma por norma de conduta a transformação radical da sociedade, em função de um tipo de vida previsto como mais completo e mais humano. O revolucionário se caracteriza pelo fato desta norma de conduta absorver integralmente a sua personalidade, a ponto de deixar na sombra qualquer outra atividade. A sua forma mais completa é o revolucionário profissional, que se desenvolveu sobretudo na Rússia a partir dos meados do século XIX.
Como interpretar este fato? O trabalho, até nova ordem, poderia constar de partes.
1ª
Mostrar que o revolucionário constituindo embora uma manifestação do tipo do rebelado – presente em todas as culturas e em todos os tempos (ou quase…) – significa uma formação psicossocial moderna. Sob certos aspectos, corresponde ao “tipo central” do nosso tempo, como o herói civilizador nas culturas primitivas, o santo no mediano cristão, o guerreiro nas civilizações militares e feudais, o capitalista na civilização burguesa. Estes tipos não são sucessivos nem exclusivos, coexistem. Mas predominam um sobre os outros, e caracterizam mais exclusivamente certos momentos uns do que os outros. É que as maneiras de autorrealização individual variam, e tomam por eixo ora um, ora outro padrão ideal. Numa mesma civilização, num mesmo tempo, vários padrões ideais coexistem e predominam conforme o setor considerado da sociedade. As representações do homem comum acompanham com sincronia variável as representações dominantes; mas geralmente um padrão ideal só se universaliza quando durante algum tempo foi um padrão de minorias. Mesmo porque a sua universalização corresponde ao período em que a expectativa de comportamento se generaliza e o excepcional entra no ritmo normal da vida.
2ª
O revolucionário aparece realmente no mundo moderno com a Revolução Francesa – com os jacobinos que instauraram o terror depois de dominarem a Convenção.
Estudar, segundo Max Weber, a dialética da rotina e do carisma, este aparecendo como fermento de mudança nos períodos de transição. O revolucionário como o tipo carismático por excelência no período crítico que se abre com a Revolução Francesa.
Podemos realmente falar de revolucionário em dois setores: o carismático e o racional.
O romantismo desenvolve uma aceitação social bem acentuada em relação ao indivíduo rebelado e só, que interferiria na mudança por sua conta própria, por assim dizer. Influência do romantismo na acentuação do caráter satânico, rebelado, do inconformado. O anarquismo niilista como sua expressão suprema.
No entanto, a marcha inevitável do mundo moderno para a racionalização do comportamento (Weber) levando à rotinização do carisma revolucionário, que se intensifica no momento em que se racionaliza a tomada do poder. O leninismo exprime de certa forma o revolucionário racionalizado, em oposição ao romântico (anarquista, socialista humanitário), pela fusão do blanquismo (arte da revolução) com o marxismo (teoria da revolução).
Esta racionalização do revolucionário se exprime em duas etapas: 1ª – antes da tomada do poder, o “revolucionário profissional”; 2ª – depois da tomada do poder, o burocrata socialista, momento em que a rotinização do carisma chegou à sua última fase, com a liquidação do elemento individualista e romântico e a racionalização definitiva do comportamento político.
3ª
Aparece então o problema do âmbito de ação do revolucionário – ou seja, dentro de que limites se pode falar em revolucionário, do individualismo à rotina.
Os teóricos anarquistas queriam com apreensão a emergência da burocracia a partir da “elite revolucionária” e condenavam por isso a teoria da “elite proletária” (Kropotkine, Makhaiski. [incompreensível])
Relação entre o revolucionário e as estruturas a que a revolução dá origem. Caso do socialismo, que parece ligado à burocracia e à tecnocracia. (Ver Schumpeter), razão pela qual Weber era pessimista quanto às posições de liberdade no mundo atual, cada vez mais racionalizado.
Estudar o problema no caso da revolução russa e a oposição simbólica Stalin-Trotsky – espécie de desdobramento de Lenin (burocracia versus blanquismo = revolução permanente).
4ª
Teoria das relações entre indivíduo e estrutura social. Interação. Revolução como exemplo.
2
Um problema capital: o revolucionário, na medida em que supera a fase negativa para encetar a fase positiva, tem de redefinir os seus valores e atitudes. Disso, sobreleva o problema de admitir conscientemente a iniquidade, por exemplo, sem quebra de integridade revolucionária (não apenas solucionando o problema pelo cinismo, ou a escamoteação do problema moral). A força extraordinária conferida pela determinação e a capacidade de aceitar, deglutir e superar o desvio do padrão ético e afetivo sem perder a humanidade (redefinida) e a capacidade de crer.
(Por exemplo: abandonar os amigos, ordenar a execução de inocentes etc.).
3
No mundo moderno, um traço novo: a ortodoxia, a heresia, a fé, a comunhão (ou seja, os complexos ideológicos, as sanções que definem a appartenance, a integração numa comunidade, ou a exclusão dela) se colocam em função do político (do elemento político).
Isto é o enquadramento que permite definir o novo tipo correspondente: o revolucionário em vez do santo.
4
É preciso distinguir no movimento revolucionário a motivação do agente e a realização efetiva. Um e outro poderão ser considerados revolucionários em relação ao comportamento de outros agentes (não revolucionários) e à diferença com o status quo.
Por exemplo: um país retardado, como a Rússia ou o Brasil, pode fazer uma revolução para atingir no terreno da produção a mentalidade (técnica) e a realização de um país como a Inglaterra e os Estados Unidos – onde uma e outra coisa não parecem conter nada de revolucionário.
Isto puxa uma questão importante: parece que há, acima do determinismo político, um determinismo tecnológico, ligado ao problema mais geral de reajustamento técnico na base das etapas mais avançadas. Ver, por exemplo, a americanização da Rússia: a americanização como ideal da construção socialista num país retardatário.
Assim, a ação reformista num país como os Estados Unidos ou como a Inglaterra pode levar as massas mais perto do ideal socialista de igualdade (por causa do progresso técnico) do que a ação revolucionária em países como a China, a Índia ou o Brasil, que têm forçosamente que construir as etapas intermediárias. Mas como estas são situadas teoricamente em função da meta final, são abordadas de modo muito diverso; e concebidas não à maneira liberal, mas à maneira de etapa. Daí se ver ao fato de uma revolução se desencadear com a finalidade de construir uma economia de tipo burguês; e como consequência, a repressão de liberdades e a estatização totalitária, que empolga a economia para evitar, efetivamente, a sua redução pura e simples a este tipo.
Parece, pois, que há uma divisão do mundo em áreas reformistas e revolucionárias “pela própria natureza”. O revolucionário atual é pois de tipo assaz diverso do revolucionário pré-bolchevique. Um passo além no caminho da racionalização da atitude rebelde.
5
A política moderna, como a produção, dependendo estritamente da propaganda, que é uma nova forma de imposição na escala dos milhões. Uma extensão da vontade de poderio. O revolucionário encarado como propagandista, sob este aspecto.
6
Uma nítida passagem na evolução do socialismo, no que se refere à posição, ou melhor, à atitude do socialista: da ética à ciência e da ciência à técnica.
Proudhon, Marx, Stalin.
O revolucionário se propondo inicialmente uma ação ética; a organização da luta e a organização futura do estado, como decorrências de imperativos de ordem ética.
Em seguida, atribuindo-se uma ação científica, o aspecto ético e o aspecto técnico apareceriam, no plano organizatório, como decorrências de certas verificações e posições cientificamente necessárias.
Finalmente, como o técnico, o aplicador de normas científicas e éticas já estabelecidas, ou que se estabelecem daí por diante em função da organização racional da produção, das relações sociais etc.
Três tipos humanos diferentes: o moralista (bem-mal), o cientista (leis naturais), o técnico (eficiência, organização).