V. As Aventuras de Tonheta

O carroceiro Andante

ilustração: Fernando Vilela

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Seção de vídeo

Nascimento

Trecho do Espetáculo “Brincante” (1995), que conta a história de Tonheta. Nele contracenam Nóbrega e Rosane Almeida.

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Nascimento (1)

imagem: acervo Antonio Nóbrega

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Teatro e humor

O meu teatro está, basicamente, nos espetáculos Brincante, Segundas Histórias e Figural. O que essas obras têm em comum é a figura de Tonheta. A dramaturgia de Brincante e Segundas Histórias está principalmente centrada na figura dessa personagem. A FIGURA CÔMICA POPULAR conhecida pelo nome de Mateus é tanto responsável pela descoberta da dança em mim quanto da minha natureza cômica. E como já escrevi foi o Mateus Guariba aquele que mais me inspirou e influenciou. Nunca soube do seu nome de batismo, pois tanto na vida real quanto na brincadeira do Boi só o conhecíamos por Guariba. Durante vários anos procurei aprender as gatimanhas, trejeitos, facécias, cantigas e danças desse Mateus. Os meus primeiros trabalhos refletem essa aderência àquela figura do teatro popular. O meu cômico passa ainda pelos Velhos dos Pastoris, pelos emboladores e recitadores de folhetos cujas histórias são povoadas de “amarelinhos” como João Grilo, Pedro Malazartes e Cancão de Fogo, pelos chanchadeiros Oscarito, Grande Otelo, Zé Trindade, Cantinflas e Totó, pelos palhaços Grock, Popov e Dimitri, Buster Keaton, Chaplin, Marcel Marceau…etc. E pelos inúmeros outros Tonhetas que inundam as ruas do meu país…

Antonio Nóbrega

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Alterego

Fac-símile de um dos cadernos de Antonio Nóbrega | imagem: reprodução

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Viagem a Solapino

Fac-símile de um dos cadernos de Antonio Nóbrega | imagem: reprodução

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Extraordinária demanda mambembeira

Fac-símile de um dos cadernos de Antonio Nóbrega | imagem: reprodução

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Rabequita

Trecho do DVD “Lunário Perpétuo”, direção Walter Carvalho

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Tonheta – O Funambulesco

por BRAULIO TAVARES

Tonheta é um possível arquétipo de artista de rua que começou a ser lapidado por Antonio Nóbrega muitos anos antes de ser reunida a equipe de criação da peça Brincante, formada pelo próprio Nóbrega, Rosane Almeida, Romero de Andrade Lima e eu. Entre 1990 e 1992 trabalhamos, em surtos eventuais de grande intensidade, na criação de versos, cenas, indumentárias, piadas, adereços, diálogos, cenários e números de malabarismo ou de habilidades cênicas. O sucesso de Brincante, de 1992, e de Segundas Histórias, de 1994, deu ao personagem grande popularidade, que se ampliou quando Nóbrega fez uma transição gradual da peça de teatro com números musicais para o show musical ilustrado por pequenos entremezes cênicos. Tonheta está presente em praticamente todos os seus discos e espetáculos mais importantes, como um brasileirinho galhofeiro que, na sua ingenuidade astuciosa, cristaliza um pouco dos milhões de brasileiros (e não só brasileiros) que o inspiraram.

Os ancestrais de Tonheta são saltimbancos de beira de estrada, prestidigitadores de paletó surrado desdobrando baralhos de ouro para plateias sonolentas, rabequeiros roufenhos puxando cortejos em veredas batidas de sol, parelhas de palhaços virando bunda-canastra diante das câmaras, capoeiras empoeirados jogando rabos de arraia na praça da feira. Muitos venderiam a alma ao diabo para ser Tonheta. O problema é que o diabo não negocia nesse ramo. Iludidos, ferveram poções mágicas, beberagens que incluíam asa de morcego, rabo de lagartixa, solado de bota de soldado de polícia, pneu de carro fúnebre, chave de cadeia, sapo barbudo, trevode-
cinco-folhas, chifre de boi tungão, prepúcio de gorila, dentadura postiça de vampiro, lona de ringue de MMA, lençol de motel. Ferveram, coaram, beberam. Não adiantou. 

Em suas andanças pela ciclovia periférica que rodeia os séculos, Tonheta teve numerosos encontros com homens notáveis. Com o escriba barroco Alcofribas Nasier ele destroçou regabofes acompanhados de vinho tinto e forró de alaúde. Com o amanuense Albert Einstein tocou duetos ao violino e trocou ideias sobre a relatividade da escala diatônica. Com o grande Nijinski ele tomou um porre de caipirosca moscovita que os fez voltarem juntos para o hotel pulando de teto em teto. Com Luís Vaz de Camões ele exumou as estrofes censuradas da Ilha dos Amores e fez parceria em estrofes escarninhas contra a monarquia europeia. Ao lado de Villa-Lobos, coube-lhe inventar uma pianola musical automática capaz de colocar melodia em qualquer texto recitado à sua frente, e sua parceria com Santos Dumont produziu um para-raios que em vez de raios atraía chuva. 

Tonheta vê com simpatia a prática da arte pela arte, mas, para poder praticar sua arte nas horas vagas, ele já foi vendedor de picolé, entregador de pizza, sapateiro, engraxate, porteiro de sinuca, cambista de senha bancária, flanelinha de engarrafamento, vigia de monumento em praça pública, vendedor de amendoim torrado em avião de empresa decadente, cortador de rolete de cana, empinador de pipa em tarde sem vento, desbloqueador de celular achado no lixo de um show de rock, procurador de cachorro perdido, vendedor de bolão vencido da Mega-Sena, contador de filme para quem não tinha o dinheiro do ingresso, puxador de palma em comício, garçom de carroça de angu. Seu DNA histórico guarda cromossomos dos truões e das barregãs que se alojavam no Pátio dos Milagres da corte francesa; dos degredados e convictos que vieram em galés e grilhões povoar o Brasil de pequeninos caboclos bastardos; dos pícaros nômades que mendigavam e furtavam na beira de todas as estradas entre Santiago de Compostela e Gibraltar; dos tangerinos e tropeiros que chicoteavam suas alimárias nos contrafortes das serras nordestinas; dos carregadores de fardos das missões científicas europeias que se internaram nos cerrados insondáveis do Brasil profundo; dos violinistas ciganos que rasquearam zíngaras em volta das fogueiras do Oiapoque ao Chuí; dos canibais pintados que pularam de maracá em punho diante dos inimigos atados ao poste no centro da taba; dos amarelinhos, jecas-tatuzinhos, mulatinhos, cancãozinhos, caboclinhos, sararazinhos, malazartinhos, pivetinhos e zés-povinhos espalhados pelo sistema circulatório da nação, todos os filhos do lodo em cuja testa está escrito: “Eles herdarão a Terra”.

 

Braulio Tavares nasceu em Campina Grande (PB) em 1950 e mora no Rio de Janeiro. Escritor e compositor, ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura Infantil com A Invenção do Mundo pelo Deus-Curumim (2008), em parceria com Fernando Vilela, e o Prêmio Shell de Melhor Texto com Brincante (1992), em parceria com Antonio Nóbrega.

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Em cores

ilustração: Romero de Andrade Lima

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Em cores (1)

Foto: Tonheta no espetáculo "Segundas Histórias" | imagem: acervo Antoni Nóbrega

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Morte

Trecho do Espetáculo “Brincante” (1995)

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Pedrinha-caroço

por JOÃO SIDURINO*

*Personagem de Antonio Nóbrega que conta as aventuras de Tonheta

Posso dizer que eu, João Sidurino, epopeísta, mestre de cerimônias, rapsodo, coreografador, cantador, homem-banda e encenador, só decidi-me a revelar ao mundo as extraordinárias façanhas do industrioso Tonheta, o carroceiro andante, depois que conheci Rosalina de Jesus, ex-rumbeira e malabarista do famoso circo Alakazan, hoje minha única, insuperável e inseparável partner e companheira de toda a vida. Só com a união de nossas qualidades e exuberantes habilidades artísticas é que tal empresa seria possível. Mas quem é esse fabuloso Tonheta, cujas crônicas se acham dispersas em velhos alfarrábios desaparecidos, cujas histórias a quintessência dos meus sentidos mal pode escutar das longínquas vozes daqueles que há séculos foram conduzidos para o outro-lado, amém? 

Queridos amigos, Tonheta vive em mim como uma espécie de pedrinha-caroço (tais são as palavras que me ocorrem) que lateja sem parar no âmago profundológico da minha essência abismal recôndita! Será Tonheta então, por isso, um ser invisível? Vejamos. Quando rodamos, eu e Rosalina, com nosso Circo-Teatro Brincante pelas estradas do país, encontramos pelas feiras e praças velhos cantadores que
contam as aventuras de João Grilo, Pedro Malazartes. Canção de Fogo, como se sabe, nomes menos usuais com que Tonheta é alcunhado. Aliás, um dia desses, ali perto do trevo que leva a Águas de Totorobó, encontramonos com Mestre Saúba, um folgazão completo, assim como eu, que brincava (atuava, para quem não é versado em nomenclatura tonhetânica) com o seu Benedito na sua tolda de mamulengos. Que nada! Aquele Benedito lá não era nada mais nada menos que uma transfiguração de Tonheta.

Mas, voltando à minha pedrinha-caroço que lateja, afirmo que o que me faz verdadeiramente relatar as bravatas e facécias do admirável Tonheta não é nada mais, nada menos do que um imponderável impulso que se transforma numa louca vontade de brincar com o mundo, de nele fazer cócegas, um desejo incontrolável de lambuzar-me na desordem primitiva: dançando, pulando, cantando, piruetando, pinotando, mimicando, berrando, assobiando, gingando, mugangando, até atingir o meu gozo no êxtase caótico da paz celestial endiabrada. Às vezes as pessoas me dizem: “Tempos difíceis esses em que vivemos”. Concordo. Só que, em sendo mestre de cerimônias, epopeísta etc. e tal, eu, João Sidurino, também conhecido como Mestre Siduca, não posso calar- -me. Mestre que é mestre ensina, aconselha, serve para alguma coisa. Por isso digo sempre: queridos amigos meus, tonhetai-vos uns aos outros!

Texto publicado originalmente em COELHO, Marco Antônio; FALCÃO, Aluísio. Antônio Nóbrega: um artista multidisciplinar. Estud. av., São Paulo, v. 9, n. 23, abr. 1995, e revisto pelo autor para esta publicação.

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Meu foguete brasileiro

Trecho do DVD “Lunário Perpétuo”, direção Walter Carvalho