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Que audácia!

Artacho Jurado cortando bolo no formato do Edifício Viadutos. Ao seu lado estão sua filha, Diva, e sua esposa, Mercedes.

Artacho Jurado cortando bolo no formato do Edifício Viadutos. Ao seu lado estão sua filha, Diva, e sua esposa, Mercedes | foto: autoria desconhecida/acervo família Jurado

Filho de imigrantes espanhóis, João Artacho Jurado (1907-1983) cresce entre o catolicismo da mãe e o anarquismo do pai. Mesmo não frequentando uma faculdade de arquitetura ou engenharia – com uma formação amparada por cursos de desenho técnico, iniciados na projeção de neons para os comércios da Rua Augusta e região –, torna-se um dos principais nomes da indústria imobiliária paulistana em meados do século XX.

É a partir de sua participação em feiras industriais na década de 1940, onde constrói um pensamento cenográfico, tipográfico e formal arrojados, que Artacho desenvolve uma estética arquitetônica que marca seus projetos futuros, com pastilhas coloridas, cobogós, gradis rebuscados e janelas generosas. Para ele, o desenho de cada detalhe tem importância, característica que faz, até hoje, com que seus prédios sejam reconhecidos a distância, cumprindo o sonho do arquiteto de criar cartões postais. A Construtora e Imobiliária Monções – empresa fundada em parceria com seu irmão, Aurélio Jurado Artacho – desenvolve uma rota turística para apresentar suas invenções, partindo do Edificio Bretagne, em São Paulo, e chegando ao Edifício Verde Mar, em Santos.

Esta Ocupação busca compartilhar esse encantamento de Artacho com a arquitetura, realizada à revelia da crítica do período, sem perder o humor, a fantasia, a pluralidade de referências e a vertigem ao olhar a paisagem da cidade emoldurada por balcões e marquises.

Guilherme Giufrida e Jéssica Varrichio, curadores da exposição

Guilherme Giufrida é curador e antropólogo, mestre em antropologia social pelo Museu Nacional-UFRJ. Desde 2018 integra a equipe curatorial do Museu de Arte de São Paulo (MASP) e, desde 2016 é curador do museu do louvre-pau-brazy. Foi assistente de curadoria da 10ªBienal de Arquitetura de São Paulo (2013). Organizou diversos livros, tais como O MASP de Lina (2019) e onde está pedro américo? (2018).

Jéssica Varrichio é pesquisadora e atriz. É curadora do museu do louvre pau-brazyl. Concebeu com Giulia Damiani as peças As enchentes entre os incêndios (2018) e Emma B. Is Not Dead (2020). Foi assistente curatorial no Pivô Arte e Pesquisa e assistente do Núcleo Contemporâneo do MAM-SP.

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“Eu sempre entregava a tesoura para cortar a fita e o pessoal comentava: 'Você cresceu!'”

Diva Artacho Jurado, filha

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Diva Aratacho Jurado (no canto inferior esquerdo), durante cerimônia de corte da faixa inaugural na Exposição do Centenário de Santos, 1939 | foto: autoria desconhecida/acervo família Jurado

Diva Aratacho Jurado (no canto inferior esquerdo), durante cerimônia de corte da faixa inaugural na Exposição do Centenário de Santos, 1939 | foto: autoria desconhecida/acervo família Jurado

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Diva Artacho Jurado | foto: Letícia Vieira

Diva Artacho Jurado | foto: Letícia Vieira

Seção de vídeo

Pela perspectiva curatorial

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Que audácia: aprendendo com Artacho Jurado

por Guilherme Giufrida

Muito diferentes dos registros fotográficos da arquitetura no século XX – que costumam enquadrar os encontros formais, a acurácia das proporções e a sobriedade dos materiais e das estruturas – as fotos dos edifícios projetados por João Artacho Jurado e incorporados por Aurélio Jurado Artacho, irmãos e sócios da Construtora Monções, mostram poses de seus familiares em trajes de gala, apontando para o capricho dos empreendimentos. A filha única de João e Mercedes, Diva, aparece muitas vezes cortando uma faixa nas inaugurações, que contavam com políticos e celebridades da televisão e do cinema em suas estreias. A fotografia serviria à arquitetura, no primeiro caso, para retratá-la como um objeto estético a ser contemplado, e no segundo, para divulgar um estilo de vida, assim como indica a relação afetiva e familiar com que Artacho tratava os seus prédios. O construtor morou, junto com sua família, em vários edifícios que projetou; realizava-se com cada detalhe dos prédios, entregues ou em construção, desenhando-os minuciosamente e divulgando-os à exaustão depois de prontos, mesmo que, em geral, já estivessem completamente vendidos.

A preocupação comercial de Artacho em vender seus prédios rapidamente e prosperar não deve reduzir ou simplificar os sentidos do seu trabalho. Os itens decorativos não eram privilegiados apenas para causar impacto e, assim, comercializar as unidades. Apesar do custo elevado daqueles adornos e da oposição feita a eles pelos arquitetos do período, Artacho exigia que os prédios fossem construídos desse modo, pois desejava que seus compradores e ele próprio usufruíssem daquele prazer visual em seu dia a dia. A formação no desenho de neons, os projetos das feiras e o seu hábito de escutar e frequentar ópera – pela qual era apaixonado, comprando temporadas completas do Teatro Municipal de São Paulo –, por sua vez, fornecem as fontes fundamentais de como o construtor encontrou um caminho estético para sua vontade criativa.

No início de sua carreira, Artacho foi projetista de neons e, anos depois, ampliando os programas das áreas comuns dos edifícios, os utilizou ao incluiu espaço para publicidade acima de suas coberturas, que na sua arquitetura sempre foram projetadas como áreas comuns a todos os moradores, o que baratearia (ou até poderia zerar) o valor do condomínio. Além de viabilizar a manutenção dos espaços de lazer que ofereciam, esses luminosos reforçavam o caráter de entretenimento de seus prédios: uma arquitetura mais de comunicação do que de espaço, concebida em ressonância com a cultura de massa e não com um saber erudito. Os edifícios confundem-se com o brilho e a extravagância visual e chamativa dos neons, tornando-os pouco discerníveis a distância, edificando espécies de faróis que, como anúncios luminosos (ora com, ora sem marcas a publicitar), brilham no cotidiano banal da cidade cinza.

Até os anos 1930, havia resistência em se morar em condomínios, não apenas pela associação com os cortiços, mas também pelo medo de tragédias. Para contornar essa preocupação, Artacho conquistava os compradores propondo nos térreos e nas coberturas dos projetos zonas de prazer e de ócio. Um condomínio-clube, acessível à classe média, que propiciasse algo além do apartamento simplesmente como espaço da rotina e da família. Os compradores de seus empreendimentos poderiam beneficiar-se dos modos de convivência nos parques (de onde a sua arquitetura começara) – o que geraria o apelido de “arquitetura disneylandia”, um dos termos usados para criticá-lo –, onde adultos e crianças poderiam brincar nas horas de descanso da vida moderna que se impunha à cidade.

A moradia se aproximaria de um parque de diversões, promovendo a coletividade e o hedonismo. Assim como Denise Scott Brown (1931), Robert Venturi (1925-2018) e Steven Izenour (1940-2001) descreveram que em Las Vegas o turista, em geral trabalhadores estadunidenses, pode imaginar por alguns dias que não é um caipira do oeste, mas um membro do jet set da Riviera, os prédios de Artacho Jurado proporcionavam aos seus compradores a possibilidade de sonhar, mesmo diante da dureza da vida paulistana que se aguçava, que moravam em uma infinita estação de férias.

Artacho criava, para o trabalhador ascendente economicamente, modos de habitar que incorporavam diversos espaços para o desejo, o prazer e a fruição, possíveis apenas nos dias de férias ou aos domingos, invertendo os paradigmas da cidade do trabalho e da disciplina, que então se constituía. Compreendeu, nesse sentido, o imaginário sonhado, realizando desejos, sonhos e aspirações da classe média de uma época. Para tanto, transformava seus prédios em grandes cenários dramáticos, como os de ópera ou de cinema. Quem morasse neles, seria, mesmo que por ilusão da moldura, uma estrela. Um filme para ser vivido no cotidiano, como se cada dia fosse especial e nada banal, em que as ficções dos compradores poderiam se efetuar como realidade palpável.

O uso elevado na quantidade e na variabilidade de adornos é central para criar o aspecto fantasioso e de intensa relação com a imagem e com a ilusão, produzindo, em suas edificações, o efeito de cenário com vocação cinematográfica. Ao mesmo tempo, os ornamentos desenhados por ele eram misturados, sem hierarquia ou discriminação, com itens disponibilizados pela indústria de construção, o que envolvia uns com as particularidades do outro. Projetava, juntava e compunha todos os itens minuciosamente e, como um artesão, pouco os repetia, mesmo que citasse a si próprio, conectando os trabalhos a partir da imagem que os distinguiam na paisagem urbana.

Os edifícios da Monções eram feitos para serem vistos de frente – ao fundo, nada de solidez construtiva ou verdade. Como escreveu Maria Eugenia França Leme, “para ele, não era importante a verdade estrutural, e sim o resultado plástico atingido”. O projeto do Bretagne é paradigmático nesse sentido: a sua posição foi invertida em relação ao projeto inicial, privilegiando a vista (beleza) em detrimento do problema da insolação (aspecto técnico). O visual era privilegiado em detrimento da estrutura, constituindo uma arquitetura do efeito, que provoca até hoje as mais diversas paixões.

Os prédios projetados por Artacho foram condenados por grande parte dos arquitetos paulistas, que o consideram decorativo, impreciso, cafona, kitsch e eclético. Eduardo Corona (1921-2021), professor da FAU-USP, foi o personagem mais crítico a Artacho e aos projetos da Monções. Publicou, em 1958, um artigo intitulado Que Audácia!, criticando-o com bastante agressividade: “aberrações”; “exemplo do que não deve ser imitado”, “avesso da arquitetura contemporânea”, “errado de cima a baixo”. O IAB, pelo que consta, enrijeceu a obrigatoriedade do número de registro no CREA para as edificações por conta do sucesso da Monções, e chegou a pedir que tirassem o nome de Artacho da placa de fundação dos prédios. Mais recentemente, em 2008, o arquiteto Fernando Forte, sócio do escritório FGMF, escreveu sobre Artacho: “pseudo-modernismo desviando a atenção da arquitetura inovadora que vinha mudando a cultura do país (…) praticava uma arquitetura que provavelmente mais confundia o paulistano sobre o que era modernismo do que qualquer outra coisa”.

A arquitetura de Artacho não seguia o receituário estético das vanguardas arquitetônicas modernas, mesmo se apropriando dele quando lhe convinha. Marquises no topo de seus prédios foram inspiradas por Pampulha, desenhada por Oscar Niemeyer, a frente do Louvre vem do edifício Prudência de Rino Levi, e a entrada do edifício Pacaembu do Cine Marabá, também de Levi. Todavia, se usava referências dos modernos de então, enfeitava-os com pastilhas e adornos coloridos. Afirmava a construção de ambientes nada sóbrios ou temperados, mas sim solares, brilhantes e “antiassépticos”; o contrário da sobriedade das casas de concreto que começavam a surgir na capital paulista. Criava-os a partir da pluralidade e da simultaneidade de referências. Uma gambiarra de estilos, imagens e informações heterogêneas e aplicadas de uma só vez, constituindo uma feição própria: mega-alegórica e maximalista; um cenário do excesso: lúdico, divertido e vital.

Artacho desejou que seus prédios fossem vistos como ícones das cidades, tratados por ele como potenciais pontos turísticos. Todavia, não tinha preocupação em replicar sua criação. Cada empreendimento o estimulava a realizar desenhos absolutamente novos – os lustres talvez sejam a marca maior nesse sentido –, mas não os criava em busca de uma autoria sobre os objetos, muito menos para, eventualmente, serem reeditados. O prazer não estava no lustre (ou nos próprios edifícios) assinado e reproduzido, mas sim na realização de ver o que precisava ser construído e – por que não? – vendido rapidamente. A sua maior realização era, a cada novo empreendimento, projetar tudo de novo, e não revender à exaustão os mesmos objetos. Ou seja, não se sabe o que vinha antes: o desejo de vender ou o de desenhar.

É inócuo categorizá-lo hoje como modernista ou precursor do pós-modernismo. Artacho foi um construtor absorvido pelas escolhas materiais e muito pouco afeito às ideias arquitetônicas que seu trabalho assumiria e despertaria. Um corajoso autodidata sem formação específica, que apostava em uma arquitetura de gosto peculiar, arriscando-se em um mercado de elevado risco. Protegeu-se o quanto pôde dos constrangimentos da crítica, dos acadêmicos, da sociedade paulistana e da suposta revolução que algumas correntes arquitetônicas pregavam na Europa e, ainda que de forma rarefeita, na capital paulista. Não respeitou, nem desrespeitou, ou deu início a qualquer tradição, tampouco viu necessidade de se constituir enquanto escola que pudesse validar a sua criação e ensiná-la para os outros. Misturava referências díspares, de monarquistas a modernistas, provavelmente com pouca clareza ou politização evidente sobre seus significados, mas personificadas por ele em edifícios-ícones, construídos em pleno capitalismo tardio de um país marcado pela mistura do novo com o velho, do tradicional e do estrangeiro, do tropical e do cosmopolita e, desde então, eternamente do futuro, o que torna seus prédios também atuais e, além de tudo e por que não, simbólicos.

 

*Esta é uma versão reduzida e revisada do texto colagem-coragem: aprendendo com artacho jurado, publicado no primeiro volume do museu do louvre para brazyl, intitulada a autobiografia não autorizada da monalisa (organização de Guilherme Giufrida e Jéssica Varrichio, Meli-Melo Press, 2016).

 

Referências bibliográficas

CORONA, Eduardo. Que audácia!. Revista Acrópole 232: 3. São Paulo, 1958.

DEBES, Ruy. Artacho Jurado: Arquitetura Proibida. São Paulo: Editora Senac, 2008.

FORTE, Fernando. Polêmico Artacho do Kitsch ao Cult. Revista aU, edição 174, setembro 2008.

KOOLHAS, Rem. “Elements of architecture”. In: fundamentals catalogue, 14. Mostra Internazionale di Architettura. Veneza: Marsilio, 2014. Tradução do autor).

LEME, Maria Eugenia França. Re-Conhecendo: Artacho Jurado. Trabalho Final de Graduação, FAU-USP. São Paulo, 1994.

PRECIADO, Paul. Pornotopia: arquitectura y sexualidad en “Playboy” durante la guerra fría. Barcelona: Editorial Anagrama, 2010.

SCOTT BROWN, Denise; VENTURI, Robert; IZENOUR, Steven. Learning from Las Vegas: the forgotten symbolism of architectural form. Cambridge: The MIT Press, 1977 [1972]. Trad. Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2003.

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Vista aérea da Feira Nacional de Indústrias de São Paulo, s.d. | foto: autoria desconhecida/acervo família Jurado

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Seção de vídeo

João, Aurélio e família

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João Artacho Jurado (ao centro) e seu irmaõ, Aurélio, ao lado da Miss Estados Unidos, Eurlyne Howell, 1958 | foto: Miroslav Javurek/acervo família Jurado