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Circo só é bom se tiver um bom palhaço

O palhaço é a figura principal e mais conhecida dos espetáculos circenses, sempre permeado de saberes e de cultura. Por isso mesmo não se vê somente um tipo de palhaço e de comicidade. Há os palhaços-atores, os palhaços-cantores, o palhaço-cartaz, os que fazem acrobacias, malabarismos e saltos, os que incorporam suas raízes locais – e, importante enfatizar, hoje há a forte presença de artistas mulheres na palhaçaria.

O encantamento, o riso e a alegria – e mesmo a tristeza, dependendo da representação –, todos esses sentimentos e sensações são arrebatados pelo palhaço e seu espetáculo. Esse personagem que nos faz lembrar da nossa humanidade, de que estamos suscetíveis ao erro – e, ainda assim, nos ensina a rir desse mesmo erro.

Engana-se, porém, quem pensa que isso o torna menos importante ou alheio ao mundo. Em O avesso das coisas, livro de aforismos, o poeta Carlos Drummond de Andrade assim define:

“O palhaço, crítico da sociedade, apoia-se no riso para não ser denunciado. A consciência profissional do palhaço impede-lhe achar graça no que faz”.

Seção de vídeo

O palhaço

Neste vídeo, os pesquisadores Erminia Silva, Daniel de Carvalho Lopes e Verônica Tamaoki e o palhaço Wildson França falam sobre a trajetória e a importância desse personagem, que tanto nos faz rir.

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Uma fotografia preta e branca registra o artista Benjamim de Oliveira vestido e maquiado de palhaço.
Benjamim de Oliveira vestido e maquiado de palhaço. A foto foi, provavelmente, realizada em estúdio e foi publicada no periódico "A noite", em matéria referente ao seu falecimento, em 1954 (Fonte: A noite, Rio de Janeiro, 8 jun. 1954, p. 33. Acervos Erminia Silva/Família de Benjamim de Oliveira)

Benjamim de Oliveira vestido e maquiado de palhaço. A foto foi, provavelmente, realizada em estúdio e foi publicada no periódico A noite, em matéria referente ao seu falecimento, em 1954 (Fonte: A noite, Rio de Janeiro, 8 jun. 1954, p. 33. Acervos Erminia Silva/Família de Benjamim de Oliveira)

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"Faço versos pro palhaço que na vida já foi tudo
Foi soldado, carpinteiro, seresteiro e vagabundo
Sem juiz e sem juízo fez feliz a todo mundo
Mas no fundo não sabia que em seu rosto coloria
Todo encanto do sorriso que seu povo não sorria
Vai, vai, vai começar a brincadeira!"

Versos da música “O circo” (1967), de Sidney Miller

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“Já sei, o moleque Benjamim vai fazer o palhaço!”

Entre 1888 e 1889, Benjamim passou pelo Circo Fructuoso Pereira, em São Paulo, que algum tempo depois se associou à Companhia de Albano Pereira. Nesse período, um dos principais palhaços da companhia era Antonio Freitas, conhecido como o palhaço Freitinhas; cantador de lundu e tocador de violão, adoeceu. Abriu-se, então, espaço para um substituto. E foi Albano Pereira quem sentenciou: “Já sei, o moleque Benjamim vai fazer o palhaço”.

E foi, assim, aos 19 anos de idade, em São José dos Campos (SP), que Benjamim foi palhaço pela primeira vez.

Enfim, aplausos

Naquela altura, Benjamim já tinha conhecimento e experiência suficiente com outras técnicas circenses, fator muito importante para o palhaço. Faltava, no entanto, aperfeiçoar a comicidade. Seguiram-se muitos dias de vaias até que, em uma noite, jogaram nele uma coroa de capim. Foi a deixa para o que viria a ser seu “primeiro sucesso”:

“Deram a Cristo uma coroa de espinhos, por que não me poderiam dar uma de capim?”.

A partir de então, começou a ganhar fama como palhaço. Ganhou tanta fama que até mesmo Floriano Peixoto, presidente da República entre 1891 a 1894, foi vê-lo no circo do Comendador Caçamba, no final do século XIX. E o prestígio só aumentava quando, em 23 de novembro de 1901, o jornal O Estado de São Paulo, na coluna “Palcos e Circos”, publicava o “cartão de cumprimentos” que havia recebido do “aplaudido clown Benjamim de Oliveira”.

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O palhaço Benjamim

por Alice Viveiros de Castro

Benjamim foi um palhaço. Alguém que fazia a plateia rir com um monte de bobagens. Afinal, é isto o que faz um palhaço: um monte de bobagens e tolices. Por que homenagear um fazedor de bobagens? Porque ele é tão importante que em todas as épocas e em todos os lugares do mundo sempre existiu um palhaço. Um palhaço vestido de um jeito diferente, fazendo outro tipo de bobagem, sendo respeitado ou tratado como um simples imbecil, mas não há tribo, grupo, país em que não exista um palhaço.

E assim é até hoje e assim será para sempre. Porque nós, humanos, precisamos rir. Rir é muito importante. É rindo que a gente desfaz tensões, que a gente aprende coisas sobre nós mesmos de forma leve e sutil. Rir junto é a melhor coisa do mundo.

Imagino que o primeiro palhaço tenha surgido numa noite qualquer em uma indefinida caverna enquanto nossos antepassados terminavam um lauto banquete junto ao fogo. Em volta da fogueira, numa roda de companheiros, jogavam conversa fora. Comentavam a caçada que agora era jantar e falavam das artimanhas usadas, dos truques e da valentia de cada um. É quando um deles começa a imitar os amigos e exagera na atitude do valentão que se faz grande, temerário e risível na sua ânsia de sobrepujar a todos. E logo passa a representar as momices do covarde, seus cuidados para se esquivar do combate, sempre exagerando os gestos, abusando das caretas, apontando tão absurdamente as intenções por trás de cada ação e o ridículo delas que o riso se instala naquela assembleia de trogloditas.

E todos descobrem o prazer de rir entre companheiros, de rir de si mesmo ao rir dos outros…

Quanta saudade deixou

Benjamim era um palhaço. Um menino que nasceu em Pará de Minas (MG) em 1870. Negro, nasceu forro, como todos os seus irmãos. Um “presente” por sua mãe ser uma escrava de “estimação”. Vendia doces e cocadas e ficou fascinado pelo circo! Aquele lugar mágico que rodava o mundo cheio de gente que fazia coisas que a gente nem podia imaginar. Saltavam e voavam, e ainda tinha o palhaço, que fazia rir toda a arquibancada. Tão encantado ficou o menino Benjamim que fugiu com o circo.

Tinha 12 anos e não sabia fazer nada, mas no circo sempre há trabalho, e pouco a pouco ele foi aprendendo a saltar, andar na corda, balançar no trapézio e nas argolas. Era o Circo Sotero, e lá foi começando a ser artista.

Fugiu do circo. O dono tinha ciúmes daquele rapaz bonito que a cada dia ficava mais esperto. Fugiu de um grupo de ciganos que queria trocá-lo por um cavalo. E, como não conseguiu fugir de um grupo que queria prendê-lo como um escravo fugido, deu jeito usando sua arte. Fez todas as acrobacias que sabia e conseguiu provar que era um artista!

Saiu rodando por Minas Gerais e São Paulo, indo de um circo a outro, até que um dia – trabalhando no circo de Albano Pereira – seu destino mudou. O palhaço estava doente e… ele mesmo contou a história:

“Eu estava do lado comendo no meu prato de folha – como negro não me sentava na mesa com os outros – quando o Albano exclamou – Já sei! O moleque Benjamim vai fazer o palhaço! Tremi…” (ABREU, Brício de. Esses populares tão desconhecidos. 1963).

Benjamim ficou nervoso, e com razão. Fazer rir não é coisa fácil, é preciso ser muito inteligente, perceber se o público está gostando e improvisar muito. A verdade é que Benjamim demorou um pouco a ser um bom palhaço; como muitos outros, teve que aprender fazendo. Pouco a pouco foi pegando o jeito e se tornando um palhaço conhecido e valorizado.

Seu sonho era se apresentar na então capital federal, o Rio de Janeiro. E conseguiu. Chegou ao Rio já um palhaço de renome.

Benjamim pintava o rosto de branco, contava suas piadas, brincava com o público e tocava e cantava ao som do violão. Essa é uma característica do palhaço brasileiro, cantar modinhas engraçadas e também sentimentais. O palhaço brasileiro, além de tudo, era cantor e compositor. Benjamim gravou discos! Foi um dos pioneiros, junto com os também palhaços Dudu das Neves e Bahiano.

Um dos seus maiores sucessos no picadeiro era “Crioulo faceiro”, música composta por Dudu das Neves especialmente para ele:

“Eu sou crioulo faceiro,
Eu sou brejeiro, na multidão
Cada conquista é um tesouro
Um choro no violão”.

A música continuava com os célebres improvisos de Benjamim. Mas o final era o mesmo, cantado também pelo público:

“Quanta saudade!
Amor sem fim,
Nesta cidade
Vai deixar o Benjamim”.

Aplausos e gritos de alegria

Benjamim era um sucesso, mas tinha um grande sonho a realizar: queria fazer teatro no circo! No início ninguém achava uma boa ideia. Circo na primeira parte e teatro na segunda. Benjamim aproveitou um momento em que o circo passava por dificuldades financeiras. Já tinha um texto escrito, O diabo e o Chico. Foi um sucesso!

Benjamim ousou alto. O primeiro espetáculo estreou em 1904, e daí para a frente as montagens teatrais se sucederam e foram bem recebidas pelo público e pela crítica. Foi assim que circos de todo o Brasil começaram a ter na segunda parte um espetáculo de teatro. Cada dia uma peça diferente ajudava a temporada a ser mais longa. Por melhores que fossem os artistas circenses, o público da maioria das cidades queria novidades. Muitas peças ficaram conhecidas e aguardadas com ansiedade. Comédias, dramas e histórias de amor como O céu uniu dois corações e Honrarás tua mãe levavam ao circo todo tipo de público.

O circo tem esta capacidade: todo mundo vai a ele. Vão o vovô e o netinho; o casal de namorados; as famílias levando as crianças; o professor; o médico; o limpador de janelas; o pedreiro; o comerciante; e até o desempregado, que sempre dá um jeito de guardar um dinheirinho para subir na arquibancada.

No circo as pessoas podem vestir-se normalmente. Ninguém acha estranho sentar-se ao lado de alguém usando sandálias de dedo. Ninguém precisa de estudo, pode ser doutor ou analfabeto, todos vão rir do mesmo jeito e ficar assustados com a possibilidade de a moça bonita cair do trapézio.

No circo a gente bate com o pé no chão quando gosta muito, aplaude e grita feliz.

Acho que é por isso que o palhaço é tão importante. Ele é quem comanda o riso. As bobagens que ele faz, a torta na cara, os tropeções, a roupa tão estranha, a quantidade de coisas que ele quebra e tenta esconder… Toda a estupidez e bobice tocam dentro da gente e nós rimos. Rimos porque nos também somos bobos, falamos bobagem e tropeçamos na vida.

Vendo o palhaço, a gente se reconhece mesmo que sem se aperceber e vai se dando conta de que a vida não precisa ser tão séria. Levar um tombo é só isso, um tombo. Por isso os palhaços cantam:

“Tombei, tombei, tornei tombar
A brincadeira já vai começar!”.

 

Alice Viveiros de Castro é pesquisadora e autora do livro O elogio da bobagem – palhaços no Brasil e no mundo.

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Benjamims

Se nesta Ocupação aprendemos que Benjamim de Oliveira não foi o primeiro palhaço negro nem o único de seu tempo, sabemos também que muitos vieram depois. Palhaços e palhaças. Artistas circenses que continuam levando o riso para palcos-picadeiros e, ainda, para os teatros, as ruas e os hospitais, seja para onde forem. Aqui, reunimos alguns deles para responder à seguinte pergunta:

O que é ser palhaço?

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Ana Luiza Bellacosta, palhaça Madame Frôda

Brasília (DF) – “Ser palhaça é estar sempre ávida pelas experiências das outras pessoas, saber ouvir, estar atenta com um olhar curioso a tudo e estabelecer uma empatia para que se possa rir e se emocionar juntes!”

Ana Lú Nepomuceno, palhaça Bitela Bitelinda

Nova Iguaçu (RJ) – "Ser palhaça salva vidas, inclusive a minha."

Assucena Pereira, palhaça Açúcar Mascavo

Belém (PA) – “Ser palhaça não tem uma regra, nem certo ou errado. Podemos tudo. Vai do ser e existir mesmo, tentar compreender o que é o riso e rir com o outre, se divertir no fazer. Uma potência. É aquilo: a palhaça é o que ela quiser.”

Elaine Lima, palhaça Frella

Maceió (AL) – “Ser palhaça é sorrir para o mundo e tirar onda com o que ele lhe oferece. A piada enfatiza o caos! O humor sublinha com marca-texto neon as reviravoltas do caminho. Como palhaça, eu me libertei e passei a representar mulheres. Eu, que nem me via em muitas palhaças, passei a ser espelho. Ouvir o espaço preenchido de sorrisos, sentir-me poderosa sendo exatamente quem eu sou, com todas as minhas fragilidades e vulnerabilidades. A palhaçaria me formou como artista e mulher preta na cena. Ser palhaça é uma oportunidade de ser eu mesma em caixa-alta!”

Hislany Midon, palhaça Paragadom

Rio de Janeiro (RJ) – “Ancestralidade acima de qualquer coisa. Legado. Família e acolhimento. É a oportunidade de me transformar num ser humano melhor e transbordar conflitos transformadores na vida das pessoas, atingindo todas as esferas. Conectar afetos. É brincar. Ser criança com as responsabilidades de um adulto. É viver de modo único, experienciando a itinerância, experimentando a liberdade e exercitando a beleza da simplicidade. É também um desafio diário, de valor imensurável. É transmutar-se. Transformar-se. Errar e aprender. É necessidade, é vital. É viver, escolher viver e se sentir viva mesmo quando não se está viva. É poder falar, gritar, rir e chorar, brigar, amar, matar e morrer tudo de mentirinha.”

João Aguiar, palhaço Fiapo

Brasília (DF) – “Palhaço é estado de espírito, essência da alma ou qualquer outra definição que faça sentido e explique algo sobre nascer com o poder de fazer rir. Sim, é um poder. O palhaço brinca sério e não faz isso para alimentar seu ego. Faz para alimentar o mundo. Tem gente que nasce com esse poder, outros descobrem no meio do caminho ou que nem precisam de muito esforço... O palhaço pode ser tudo e todos, pode fazer muito. Quem gera o riso tem licença poética para isso. Quem veio antes abriu caminho para estar aqui hoje. Enquanto houver riso e motivos para rir, você verá palhaços e palhaças por aí. Salve Benjamim de Oliveira, Dona Maria Eliza Alves dos Reis e tantas outras figuras que tentaram apagar de nossas memórias, mas que seguem vivas em nossos passos e em nossas ações.”

Loi Lima, palhaça Ursa Maior

São Paulo (SP) – “É a brecha para o encontro com o outro e comigo mesma em uma realidade mais possível e limpa de julgamentos; é a possibilidade da transformação e da cura através do riso.”

Mariana Gabriel, palhaça Birota

São Paulo (SP) – “Ser palhaço é compartilhar. É um estado de escuta, de construção conjunta de emoções e de riso. Uma bolha de ar. Um respiro de liberdade. Liberdade de poder ser quem se é no mais íntimo que isso possa significar. Uma liberdade que se estabelece no presente e na relação. Venho de uma família de bisavô palhaço, tio-avô palhaço e avó palhaço... Respectivamente, João Alves, Gostoso e Xamego! João Alves, Toninho e Maria Eliza. E, por mais que tenha nascido sem ter vivido os tempos gloriosos do Grande Circo Teatro Guarany, do bisavô João, pude reconhecer o que é ser palhaço no corpo e na pessoa que era a minha avó, ainda que não tenha visto Xamego com seu nariz e sua cartola presencialmente. Enfim, existe uma disposição em dividir, de afetar e ser afetado sem ‘máscaras’! Em uma palavra: generosidade.”

Vinicius Queiroz, palhaço Chouriço

Belo Horizonte (MG) – “Eu precisava de algo para pertencer e estar no mundo, era meio introspectivo. Acho que o homem preto sente solidão. Precisava de um amigo. Foi quando comecei a experimentar a linguagem do palhaço. Isso acolheu meu espírito. E nesse momento percebi que estava começando a fazer uma amizade com ele e comigo mesmo. Eu vejo o palhaço como um menino que cuida da gente e nos ensina a permitir as imaginações, preservando o espírito da molecagem entre tantas formas absurdas de se dizer homem. Chouriço me ajuda nesse processo de sentir-me falho como ser humano. É um amigo que, entre erros e acertos, me abraça no peito e me diz: ‘É bom acertar, mas também é legal a liberdade de errar e transformar. Então, o que tem para hoje?’.”

Wander Paulus, palhaço Minduim Bestoleira dos Douns dos Doins das Liras e dos Psius dos Etecetera e Tal e dos Cara de Mingau

Rio de Janeiro (RJ) – “Eu sou palhaço para poder ser quem eu quiser ser e brincar com o mundo. Tenho nome, sobrenome e pedigree...”

Wanderlândia de Melo Barbosa, palhaça Salsichinha

Maceió (AL) – “Ser palhaça para mim é me encontrar em estado de graça. Minha missão enquanto palhaça é fazer mulheres rirem, se sentirem livres para interagir, se sentirem em estado de graça. Sentirem vontade de também fazer palhaçaria. Sobretudo mulheres periféricas terem acesso a outras mulheres engraçadas! Rir e fazer rir é missão!”

Wildson França, palhaço Will Will

Belford Roxo (RJ) – “Os palhaços são os senhores e as senhoras das emoções. Somos os perdedores, a figura do louco ou do triste. É quem abandona o que é concreto pelo não concreto. O aqui e o agora. O palhaço é quem vai trazer a emoção e a alegria que às vezes estão perdidas. Nunca se precisou tanto de uma figura como a do palhaço e da palhaça. É preciso ter vontade de rir novamente, e isso a gente sabe fazer. Como na época de Benjamim, o circo só era bom se tivesse um bom palhaço. É a evolução do vagabundo, que não está se importando com absolutamente nada: pode ser mal-humorado ou rabugento, alegre ou bobalhão. Ser palhaço é aquele que não tem comprometimento com absolutamente nada. Ele tem comprometimento com o agora. Vive sempre o presente.”

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