Por Maurício Barros de Castro
A placa foi colocada pela prefeitura do Rio de Janeiro num prédio da Rua da Carioca, no número 53. Algumas palavras estão mais apagadas devido à ação do tempo, mas é possível ler os seguintes dizeres: “O casal Cartola e Zica, do samba carioca, manteve no sobrado o Zicartola, restaurante que sediou o encontro cultural entre as zonas norte e sul da cidade, de 1963 a 1965, quando Paulinho da Viola recebeu os primeiros cachês de sua carreira”.
O texto da placa resume a trajetória de um dos mais importantes espaços culturais da história do Rio de Janeiro. O que motivou a criação da casa de samba foi a proposta feita a Dona Zica pelo jovem empresário Eugênio Agostini, que se ofereceu para entrar como sócio da mulher de Cartola na empreitada de abrir uma pensão de comida caseira.
A ideia surgiu numa das rodas de samba que Cartola organizava na então sede da Associação das Escolas de Samba, na Rua dos Andradas, também na região central da cidade. O sambista da Mangueira era zelador do sobrado antigo, e Dona Zica vendia “quentinhas” para os motoristas e os cobradores de ônibus da Praça Mauá.
Eugênio Agostini era primo de Nuno Veloso, jovem da zona sul que havia se tornado parceiro de Cartola e que fora “adotado” pelo casal mangueirense. Foi assim, por meio do primo, que Agostini virou um dos frequentadores mais animados das rodas de samba que aconteciam na Rua dos Andradas, onde Cartola reunia os amigos sambistas e Dona Zica preparava saborosos quitutes.
No entanto, a construção estava com os dias contados e seria demolida em breve. Diante disso, era preciso encontrar outro lugar para que Cartola e Zica pudessem se manter no centro da cidade. O sobrado da Rua da Carioca era perfeito para os planos de Agostini. Em pouco tempo, o Zicartola, nome que homenageava a união de Zica e Cartola, se tornou um enorme sucesso, atraindo frequentadores que lotavam a casa e formavam filas até a Praça Tiradentes.
O público principal do estabelecimento era formado por jovens universitários. A maioria deles vinha da zona sul da cidade e buscava o local para ouvir sambistas antigos que estavam esquecidos do público e viviam em sérias dificuldades.
Zicartola além do Zicartola
A curta trajetória do Zicartola não impediu a casa de samba de influenciar a criação de alguns dos principais eventos culturais que ocorreram naquele período. O ambiente formado por sambistas, comida caseira, intelectuais, artistas e estudantes universitários foi propício para a formulação de quatro acontecimentos fundamentais da história cultural do Rio de Janeiro e também do Brasil.
O primeiro deles foi o show Opinião, que estreou em dezembro de 1964, alguns meses depois do golpe civil-militar. Criado por Armando Santos, Paulo Pontes e Oduvaldo Vianna Filho, e dirigido por Augusto Boal, o musical reunia no palco Zé Kéti, o sambista do morro carioca, Nara Leão, a moça da zona sul, e João do Vale, o migrante nordestino, para montar um painel crítico da realidade social do Brasil.
Os autores e os artistas do Opinião eram frequentadores entusiastas do Zicartola. O nome do espetáculo vinha da música homônima de Zé Kéti. Os versos do samba – “podem me bater / podem me prender / que eu não mudo de opinião / daqui do morro eu não saio não” – cabiam como uma luva para protestar contra o regime autoritário que se instaurava no Brasil.
O segundo grande evento foi a criação do espetáculo Rosa de Ouro, dirigido por Hermínio Bello de Carvalho e que estreou em maio de 1965. A obra revelou para o grande público Clementina de Jesus, cantora de chulas e ladainhas da Festa da Glória que o poeta reencontrou no Zicartola.
O terceiro evento importante foi a criação do primeiro conjunto formado por compositores de escolas de samba, todos frequentadores assíduos do Zicartola – uma seleção de bambas que reunia Zé Kéti, Paulinho da Viola, Nelson Sargento, Anescarzinho, Jair do Cavaquinho e Elton Medeiros. O nome do grupo, A Voz do Morro, também foi inspirado numa canção de Zé Kéti.
O quarto acontecimento fundamental que o Zicartola influenciou, como diz a placa da Rua da Carioca, foi o surgimento de Paulinho da Viola, que recebeu no sobrado o seu primeiro cachê, pago por Cartola.
Mestres do samba e da comida, não das finanças
Ainda que fizesse enorme sucesso, em menos de dois anos o Zicartola teve de fechar suas portas. Os inúmeros problemas administrativos que a casa de samba trazia fizeram com que Eugênio Agostini abandonasse a sociedade que mantinha com Zica. Ela e Cartola continuaram à frente do sobrado, mas não conseguiram dar conta de sua administração.
Portanto, não foi a repressão da ditadura que ordenou seu fechamento, apesar de o endereço da Rua da Carioca ter se firmado como um espaço de resistência cultural ao golpe civil-militar, um local onde se reuniam opositores do regime, como Sergio Cabral, Ferreira Gullar, Vianinha, Fernando Pamplona e Teresa Aragão. O principal motivo do fim do Zicartola foi a dificuldade do casal em manter a administração da casa. Eram mestres do samba e da comida, não das finanças.
Mais de 50 anos depois a memória do Zicartola ainda se inscreve na trajetória política e cultural do Rio de Janeiro – e não se limita à placa da Rua da Carioca. Basta buscar suas reminiscências em textos, fotografias, canções, notícias de jornais, cardápios, convites e, principalmente, nas narrativas dos que viveram suas noites inesquecíveis.
Maurício Barros de Castro é doutor em história pela Universidade de São Paulo (USP) e professor-adjunto do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). É autor do livro Zicartola: Política e Samba na Casa de Cartola e Dona Zica.